"A Vida pela Frente", de Émile Ajar
"Ela acordava berrando porque em mim era sonho, mas para ela era pesadelo e ela sempre dizia que pesadelo é o que os sonhos se tornam na velhice"
Alguns raros livros causam em mim o que carinhosamente apelidei de "a síndrome do profeta". Eu os leio e quero espalhar sua palavra por aí, quase como se fosse sagrada, e acredito que todos precisam passar por essa experiência transformadora. É o caso de "A Vida pela Frente", de Émile Ajar.
O livro conta a história do órfão Mohamed, que na Paris dos anos 1960 é criado pela sobrevivente de Auschwitz Madame Rosa. Ela toca uma creche clandestina para filhos de prostitutas que não têm onde ficar enquanto as mães trabalham.
Largado na casa de Rosa quando ainda era bebê, Momo, como é conhecido, quer descobrir quem são seus pais. A madame, no entanto, tem medo de perdê-lo e não lhe dá muitos detalhes sobre sua origem. Com o passar do tempo eles desenvolvem uma bela relação - ela é a mãe que ele nunca teve e ele, por sua vez, se torna seu filho adotivo.
Em sua criação não cabe espaço para julgamentos. Ele é uma criança árabe, sendo cuidado por uma prostituta aposentada judia - os conflitos ficam para o Oriente Médio e raramente entram em discussão naquele apartamento francês.
Narrado em primeira pessoa pelos olhos de uma criança tentando entender seu lugar no mundo, o livro tem um tom de deslumbramento e absurdo. A escrita é afiada e irônica, nos fazendo rir até mesmo em momentos de tristeza absoluta.
Cabe destacar que essa é uma das maiores belezas do livro; tratar com rara delicadeza de temas que dificilmente são debatidos com profundidade como sexo, amor, morte, envelhecimento e xenofobia.
Em Belleville, o bairro pobre onde vivem, o francês é falado com muitos sotaques de imigrantes vindos de todas as partes, especialmente das ex-colônias que tiveram seus territórios devastados pela França. Como disse antes, não existe espaço para julgamentos nessa comunidade onde todos estão tentando sobreviver e se ajudam como podem.
São tocantes, por exemplo, as cenas em que os vizinhos se unem na missão de transportar Madame Rosa, já em idade avançada e sem mobilidade, toda vez que precisa deixar seu apartamento no último andar do prédio para ir ao médico.
Momo sabe que sua protetora não irá durar para sempre e precisa lidar, mesmo que ainda muito jovem, com a dura realidade da vida que vem pela frente.
Antes de concluir a resenha, preciso contar a história do autor. Entender o momento de vida do escritor é peça chave para melhor compreender o contexto da publicação.
Émile Ajar na verdade é um pseudônimo de Romain Gary, prolífico e muito famoso escritor que em meados dos anos 1960 passava por uma fase de descrédito na França. Após anos de muito sucesso, sua escrita agora era considerada fora de moda.
Achando, e não sem alguma razão, que os críticos estavam pegando no seu pé, ele inventa o pseudônimo Émile Ajar, para poder escrever sem que suas obras sofressem do preconceito que seu nome então carregava. A identidade seria revelada apenas após sua morte.
Deu muito certo, "A Vida pela Frente" foi ganhador do Goncourt, o maior prêmio literário francês. Fun fact: a premiação só pode ser concedida uma única vez para cada autor. Gary foi vencedor duas vezes, uma como ele mesmo e outra como Ájar.
O livro virou febre após seu lançamento e é considerado até hoje um dos clássicos da literatura moderna francesa.
Posso dizer com certa convicção que esse é o meu livro preferido entre todos que já li. Enredo e escrita são impecáveis e o desfecho, tão improvável quanto doloroso, é algo difícil de esquecer.
To lendo e devorando! Que leitura e já concordo com você sobre ser um dos melhores livros que já li (e nem terminei!). Curiosamente emendei ele depois de ter lido “marcas de nascença”, também narrado por crianças e tem temas similares. Parecem se interligar de alguma forma. Adorei a história do autor, como só vou atrás depois de ler, eu achava que tinha Émile era mulher (e nem é nome feminino, mas bem…). Amei a descrição de virar “profeta”.
eu amei tanto esse livro! e o filme, baseado, também é lindo! mas, amiga, confesso que "a síndrome do profeta" (como amei!) me bate mesmo é com as tuas resenhas! como não querer que todo mundo 1. leia; e 2. leia o livro tbm.
Arraso!