"Escute as Feras", de Nastassja Martin
"Nesse dia 25 de agosto de 2015, o acontecimento não é: um urso ataca uma antropóloga francesa em algum lugar nas montanhas de Kamtchátka. O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontram"
Em 1996, quando eu tinha oito anos, fui atacada por um rottweiler. O cachorro mordeu minha cabeça, deixando um rastro de mais de 30 pontos. Eu não me recordo de muitas coisas dessa época, mas se fecho os olhos por um instante consigo lembrar claramente da imagem do animal em cima de mim, me destroçando aos poucos. Do sangue se espalhando por onde eu passava, da minha tia me levando às pressas para o hospital. Do alívio do médico ao perceber que meu cérebro não havia sido afetado apesar da profundidade das mordidas. Das vacinas e os dos antibióticos que tive que tomar nos meses seguintes. Das bandagens, de tirar e recolocar diariamente os curativos, das faixas de cabelo raspado.
Eu não costumo trazer histórias pessoais para minhas resenhas, mas essa é a única forma de falar com profundidade sobre como o livro "Escute as Feras", de Nastassja Martin, me afetou. Na obra, a antropóloga francesa narra seu encontro com um urso e como sua vida muda completamente após o ataque. Eu não fui mordida por um urso, mas conheço, mesmo que em menor escala, a sensação de ser atacada por um animal.
É preciso deixar claro, no entanto, que por mais que os relatos da antropóloga tenham reverberado fundo dentro de mim, trazendo à tona uma série de memórias doloridas e recordações quase físicas, essa obra sem dúvidas mexeria comigo, mesmo se nada disso tivesse acontecido. O livro, que é diferente de tudo que já li, é curto e potente, como um soco.
Morando na inóspita e misteriosa região russa de Kamtchátka, após passar anos entre os povos originários do Alaska, Martin se vê, contra todas as probabilidades, sobrevivendo ao ataque de um urso.
A partir daí ela começa uma saga de peregrinação por salas de cirurgia e hospitais, deixando muito clara a diferença entre a medicina oriental e ocidental de Rússia e França - quando os médicos parecem travar uma guerra fria entre si. Em dado momento chegamos a nos questionar se a violência maior partiu do urso ou dos profissionais encarregados de a tratar.
Aos poucos, com um rosto lesado, inchado e cheio de cicatrizes, Martin começa a observar na própria pele as crenças ancestrais que vinham estudando na última década. Acontece que um de seus objetivos de registro era justamente o animismo, a crença de que humanos e animais são iguais e possuem espírito que podem se comunicar.
Sua família e amigos não entendem, mas o encontro com o urso transforma a ambos. Agora, Martin se torna uma “mulher-urso“, que leva um pouco do animal dentro de si, enquanto o urso traz dentro do peito a humanidade da antropóloga.
“Nesse dia 25 de agosto de 2015, o acontecimento não é: um urso ataca uma antropóloga francesa em algum lugar nas montanhas de Kamtchátka. O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem. Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça. É também o tempo do mito que encontra a realidade; o outrora que encontra o atual; o sonho que encontra o encarnado. A cena acontece nos dias de hoje, mas poderia muito bem ter ocorrido há mil anos.”
O livro é escrito lindamente e nos faz refletir sobre o limite da dor, da consciência do ser humano como tal, além de nos levar por uma viagem pelos cantos mais inóspitos da Rússia, conhecendo um pouco de seus povos e crenças ancestrais.
É uma narrativa que prende, não apenas pela raridade dos acontecimentos - reais - afinal, poucas pessoas sobrevivem a um ataque dessa magnitude para contar a história, mas também pela própria escrita. Algumas construções são tão simples e mesmo assim carregadas de tanta beleza dentro de si que é preciso dar pequenas pausas ao longo da leitura para retomar o fôlego.
Estou no final da leitura e já sei que esse é um dos livros que vai permanecer orbitando meus pensamentos ainda por muito tempo!
esse livro <3