(Especial) "A Idiota", de Elif Batuman - Colaboração de João Vitor Lago (@jojoaaao)
Para comemorar que estamos batendo a marca de mil assinantes, pedi para que algumas pessoas queridas - leitoras e leitores vorazes que admiro - escrevessem sobre livros que marcaram suas vidas
A Internet pode ser um lugar tão horrível que muitas vezes a gente esquece de seu lado mais bacana, sua faceta Vinícius de Moraes, aquela da “arte do encontro“. Não fosse a realidade virtual, não teria conhecido diversas pessoas que são amigos próximos hoje.
É o caso do João Vitor Lago, um jovem muito mais novo, de outra geração, que mora a quilômetros de distância. Se a Internet não existisse, muito provavelmente eu não teria lido suas resenhas fantásticas, nem descoberto diversos livros que ele indica. Sua habilidade de curadoria é invejável, por isso não canso de recomendar seu insta @jojoaaao
Uma de nossas paixões em comum é “A Idiota“, da Elif Batuman, um romance de formação que fala fundo ao coração de todos aqueles que já foram jovens tentando entender seu lugar no mundo … mas deixo a palavra para meu convidado de hoje…
Em abril de 2021, li “A Idiota”, de Elif Batuman, lançado pela Companhia das Letras e com tradução de Odorico Leal. O romance fala sobre a vida de Selin, estadunidense com ascendência turca (assim como a autora), no primeiro ano da faculdade de Letras em Harvard, no começo dos anos 90, quando a Internet, computadores e o e-mail eram uma novidade. No livro, acompanhamos nossa protagonista durante suas aulas com colegas peculiares (um beijo especial para Svetlana, amiga que eu gostaria de ter), e seus professores excêntricos. Em um dado momento na classe de russo, Selin conhece Ivan, e uma troca de e-mails juvenis e pseudo-intelectuais-que-servem-de-flerte acontece. Esse encontro mexe com Selin e é a chave para uma grande viagem que ela decide fazer para a Hungria na segunda metade do livro — quando o espaço universitário muda para vilarejos húngaros.
Foi tão gratificante acompanhar as angústias de Selin, sua admiração pela Linguística, suas dúvidas em relação à vida, ao amor (será mesmo amor?), seus questionamentos acadêmicos e seu sonho em ser uma escritora. É impossível não se identificar com os pensamentos de Selin durante suas aulas caso você tenha cursado Letras – ou tenha sido um adolescente. Não é um livro com reviravoltas ou plots mirabolantes, é a vida de Selin como ela é, a vida de uma jovem entrando na faculdade e redescobrindo o mundo e se redescobrindo como indivíduo.
Na época, estava tão ansioso para a chegada desse livro ao Brasil que paguei um absurdo na pré-venda. Devorei o romance e naquele momento, após finalização da leitura, tive um sentimento meio amargo. Se marquei tantas coisas, dei tantas risadas, por que estava com o sentimento de “esperava mais” do livro? Por que não paro de pensar nessa protagonista se ela me irritou tanto ao final do romance? Ao menos todo mês tinha uma passagem escrita no meu caderno sobre ela, sobre esse romance e sobre sua autora. Selin, Selin, Selin. As atitudes da protagonista, os dilemas amorosos, universitários, seu senso de humor, sua preguiça, seu conformismo e sua vida se juntaram à minha em paralelo. Claro que em tempos diferentes e realidades diferentes, mesmo assim, houve uma catarse. É uma dessas ocasiões em que um livro cresce em você após dias, semanas e meses de leitura.
Na primeira vez que li o livro, tive a sensação de que o ritmo de leitura nessa segunda parte tinha diminuído, achei até maçante em alguns momentos (engraçado, pois na segunda parte do livro, Selin passa por Paris, Budapeste e depois em um pequeno vilarejo na Hungria para ministrar aulas de inglês). Entretanto, com o livro crescendo a cada dia dentro de mim, eu sabia que precisava relê-lo, ou ao menos, reler todas as infinitas marcações que deixei. Quando descobri que a autora estava escrevendo uma continuação, foi o momento perfeito para isso, e o resultado dessa releitura foi uma mudança total de pensamento. Eu, agora, tinha amado a segunda parte do livro e todo debate linguístico e o choque cultural que Selin sofre nesses países, me cativaram.
Somos apresentados para muitos personagens novos, pois Selin se hospeda em algumas famílias húngaras e conhece muitos alunos. Ela até brinca com essa situação, dizendo que sua vida naquele momento parecia um romance russo, onde personagens novos brotavam a todo momento, para logo em seguida sumirem. Ainda prefiro a primeira parte do livro, pois todo o ambiente universitário e acadêmico me encanta.
Um dos resultados da minha obsessão pelo romance e pela autora, foi ler e assistir várias entrevistas e matérias com ela. É notável o senso de humor da Elif em seus livros, mas fica mais perceptível nas entrevistas. Em uma delas (que recomendo fortemente a leitura), para a Folha de São Paulo, quando o livro foi recém-lançado no Brasil, a autora diz que gostou muito da declinação feminina para o título. No original, “The Idiot”, faz referência direta ao livro de Dostoiévski, e isso não se perdeu com a tradução para o português, nem com a declinação.
Elif conta que o livro foi baseado em grande parte em seus diários no final dos anos 90, quando estava na faculdade, tornando um romance quase autobiográfico. Isso me inspirou, pois mantive diários e cadernos durante toda minha faculdade – e ainda mantenho. Outra parte favorita da entrevista e que me tocou, foi quando a autora contou: “Muitas das minhas decisões foram tentativas de replicar situações que parecessem universais da literatura. E, assim, perdi muitas oportunidades”. No final da matéria, ela revela que tinha acabado de entregar o manuscrito da sequência de “A Idiota”, intitulado “Either/Or”, lançado no ano passado nos Estados Unidos, mas ainda sem previsão para chegar ao Brasil.
Além dos dois romances, Elif publicou um livro de não ficção, chamado “Os Possessos”, lançado no Brasil pela editora Leya, em 2012. O livro fala sobre a relação da autora com a literatura russa e sobre a sua própria vida, tornando assim, um livro de memórias. Notei várias ligações com “A Idiota”, reforçando a ideia do romance ser quase autobiográfico. Comprei “Os Possessos” em uma viagem para Sorocaba, em São Paulo, e lembro dele estar em uma prateleira de saldão em uma livraria qualquer, abandonado há anos e cheio de poeira. Levei ele comigo e comecei a lê-lo naquele mesmo dia, mas acabei não finalizando a leitura, pois imaginei que faria mais sentido finalizar quando eu tivesse contato com literatura russa (por favor, se você gosta de literatura russa, leia esse livro). Elif é uma daquelas autoras que eu leria até a lista de supermercado, ela é engraçada e ao mesmo tempo melancólica. A escrita dela é bem humorada, inteligente, afiada e gostosa de se acompanhar, mesmo quando não há grandes acontecimentos nos livros.
Depois de tanto quebrar a cabeça e de me perguntar o porquê de Selin me incomodar tanto na minha primeira leitura, percebi que ela era como um espelho. Os defeitos de Selin eram os meus defeitos, suas qualidades eram as minhas qualidades. Eu era “A Idiota”.
João Vitor Lago (@jojoaaao) é formado em Letras, trabalha na área educacional e escreve. Começou no bookgram em 2021 e desde então vem compartilhando suas leituras de maneira confessional
Ahhh que parceria maravilhosa 🖤 gostei demais do texto! Fui dessas que achou o livro um tanto maçante, mas agora tô vendo que preciso retomar!!!!
Amei essa dobradinha <3