(Especial) "Pessoas Normais", de Sally Rooney - colaboração de Bárbara Bom Angelo
“Ele passou o braço na cintura dela. Ele nunca, jamais tinha tocado nela na frente de alguém.”
Para comemorar que estamos batendo a marca de mil assinantes nessa newsletter, pedi para que algumas pessoas queridas - leitoras vorazes que admiro muito - escrevessem sobre livros que marcaram suas vidas.
A primeira convidada é a jornalista , que vocês com certeza já devem ter ouvido falar, pois sempre recomendo os escritos dela por aqui.
A Babi escreve já há muitos anos uma das newsletters mais legais que conheço, a - que já até virou livro. Ela ama literatura e comenta lindamente sobre as leituras que faz.
Pedi para que ela escrevesse sobre um assunto do qual entende MUITO, a obra da irlandesa Sally Rooney, sobre quem Babi está elaborando uma tese de mestrado.
Pessoas Normais é um livro que mexe demais com quem o lê e é muito difícil não ser absorvida pela história de amor, mas acima de tudo de companheirismo, de Marianne e Connell. E ninguém poderia escrever melhor sobre isso do que a Babi.
Perdi a conta de quantas vezes li Pessoas Normais. Na primeira, em 2020, só larguei o livro quando cheguei à última página, por volta das 4h da manhã. Lembro de ter ficado numa ressaca emocional, tentando prolongar a história de Marianne e Connell para além do que Sally Rooney dividiu com os leitores.
Fui salva pela adaptação para a TV. Emendei um capítulo atrás do outro e assim virei mais uma madrugada. Quando voltei desse mergulho, decidi que faria alguma coisa com as sensações que o romance deixou em mim. Foi a semente do que viria a ser o projeto de pesquisa do mestrado em Letras que comecei este ano.
O gosto por Sally Rooney vinha desde 2017, quando Conversas entre amigos foi publicado por aqui. Narrado em primeira pessoa por uma jovem desiludida com a vida adulta e desajeitada romanticamente, o livro de estreia da autora me levou de volta a O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger. O tema que os dois têm em comum é a juventude — a angústia de não saber o que vem pela frente, o sentimento de inadequação.
Salinger escreveu sobre como era crescer nos Estados Unidos no final da década de 40/início dos anos 50. Rooney tem contado a experiência da minha geração, os chamados millennials. E, ainda que seja irlandesa, os registros dela têm elementos que atravessam culturas, como reflexões sobre a precarização do trabalho e o impacto da comunicação digital nas relações.
Enquanto Conversas entre amigos não traz marcos temporais específicos, Pessoas Normais se passa num período bem delimitado, entre 2011 e 2015 — ou seja, os anos de austeridade depois da crise financeira de 2008. É uma informação importante, que contamina as trocas entre Marianne e Connell. De classes sociais diferentes, cada um sofre os impactos da crise de formas distintas.
Na verdade, a família de Marianne quase não é afetada. Já Connell, para se manter em Dublin, onde faz faculdade, precisa colecionar empregos e ainda assim não é capaz de pagar por um apartamento em boas condições de estrutura e localização — um desafio imenso em meio ao destroçado mercado imobiliário da Irlanda. E é um conflito como esse, ao redor da grana e da moradia, que vai servir de estopim para uma das viradas do romance.
Outro exemplo: as impressões diferentes que os dois têm ao conquistarem bolsas de estudos super disputadas entre os alunos do Trinity College. Para ela, “a bolsa era um incentivo à autoestima, uma feliz confirmação do que ela sempre achou sobre si mesma: que era alguém especial. […] Para ele, a bolsa é um gigantesco fator material, como um imenso cruzeiro que surgiu do nada, e de repente, pode cursar um programa de pós-graduação de graça se quiser, e morar em Dublin de graça, e não voltar mais a pensar em aluguel até terminar a faculdade.”.
É a partir de contrapontos como esse que vamos acompanhando o amadurecimento deles — um romance de formação duplo em meio a uma época de transição. E sendo assim, para além de comentários econômicos e de relações de poder, a história também fala de intimidade, de limites. De educação cultural, de possibilidades de carreira. De família como um lugar de apoio ou de adoecimento. De saúde mental, de cuidado, de amizade.
É o livro que eu adoraria ter lido durante os primeiros anos da faculdade. Pessoas Normais, como todo bom romance de formação, trata os desafios da juventude com seriedade. Não minimiza ou torna fúteis as aflições. Traz um recorte sensível, que termina de um jeito agridoce, mas muito bonito: falando de amor e com incentivos à busca pelo próprio caminho.
Bárbara Bom Angelo é jornalista e escritora. Sua newsletter Queria ser Grande, mas Desisti é uma das mais admiradas do mundo literário, contando com milhares de assinantes. Você pode conhecer mais do seu trabalho em @babibomangelo
melhor constatação: queria ter lido PN no início da faculdade!