Para entender o motivo de “Mau Comportamento“, da norte-americana Mary Gaitskill, ter se tornado um clássico da literatura alternativa local é preciso pensar sobre o contexto em que foi escrito. Lançado em 1988, o livro traz uma série de contos com um tipo de protagonista que se já existia, era raridade, a mulher “mau comportada“ - até então, o estilo era reservado apenas a personagens masculinos. Parafraseando o meme, Gaitskill andou para que autoras como Ottessa Moshfegh pudessem correr.
Sem julgamentos de qualquer tipo, Gaitskill dá vozes para mulheres com comportamentos destrutivos, que vivem relacionamentos abusivos, usam drogas, são sadomasoquistas ou até mesmo ganham a vida se prostituindo. Não existe na publicação uma mocinha em busca do príncipe encanto. São mulheres tentando sobreviver numa sociedade extremamente machista e abusiva.
Mas se essa característica se sobressai, ela com certeza não é a única para que “Mau Comportamento“ seja um livro único. Os contos, que se passam em geral em curto espaço de tempo e sem muita ação, são escritos com tamanha fluidez e realismo que é, já desde as primeiras linhas, difícil de largar o livro.
Os personagens poderiam facilmente ser você ou alguma de suas amigas. E está aí mais uma grande sacada da obra; ninguém se identifica com princesas em torres longínquas ou mocinhas indefesas, mas as protagonistas das histórias de Gaitskill são cheias de inseguranças, defeitos e frustações. São reais e quase palpáveis.
Em um dos contos, um casal que sai em sua primeira viagem juntos termina brigando incessantemente diante da falta de diálogo e da alta expectativa de ambos. Algo tão banal poderia não ser interessante em um livro, mas a autora mostra com cuidado e habilidade os mundos internos, criando um sentimento que reflete no próprio leitor. Afinal, quem nunca teve suas grandes esperanças esmigalhadas pela dura realidade?
As tramas retratadas se passam mais num plano emocional, com mulheres - e em alguns poucos casos homens - refletindo sobre as pequenezas de seu cotidiano e suas existências. A linha que une os textos são as reflexões a cerca da solidão e os diversos capítulos podem, ou não, estarem conectados.
Apesar de os contos terminarem sem um clímax, algo que geralmente me deixaria profundamente incomodada, a escrita é tão habilidosa, que isso passou quase despercebido, como se fosse o desfecho natural para aqueles personagens a quem me apeguei tanto.
Em 2002, o conto “Secretária“ foi transformado em um filme protagonizado pela atriz Maggie Gyllenhaal e dirigido por Steven Shainberg - apesar de a adaptação para o cinema divergir bastante da história original.
Antes de terminar, é preciso fazer uma menção honrosa para tradução da poeta Bruna Beber, que conseguiu, num feito raro, manter a excelência do texto; até mesmo as gírias, usando expressões em português comuns nos anos 1980, quando a obra foi escrita.
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uma resenha boa é aquela que te dá um fogo pra comprar o livro, e é assim que tô me sentindo agora!!