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"Memórias de Adriano", de Marguerite Yourcenar
"A felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor falta de delicadeza desfeia-a, a menor palermice embrutece-a"
Existem livros que se apagam da nossa memória quase imediatamente após a leitura. Com sorte, em outros casos, personagens e enredos podem permanecer na nossa cabeça por alguns anos. Raros, no entanto, são o livros que continuam claramente impressos na nossa lembrança por toda uma vida - não somente sua narrativa, mas também as sensações que deixaram quando foram lidos.
Para mim, esse é o caso de "Memórias de Adriano", uma das obras mais conhecidas da escritora franco-belga Marguerite Yourcenar. Eu o li quando tinha 17 anos, numas férias onde mimetizando outro clássico francês, “Bom dia Tristeza“, de Françoise Sagan, passei meus dias de verão “largateando” ao Sol e folheando livros - mas na versão tupiniquim isso se deu na beira de uma piscina em Barão Geraldo e não numa praia do Mediterrâneo.
Lançado no começo dos anos 1950, o livro marcou não apenas a mim, mas gerações inteiras ao longo dos anos - assim como aconteceu na minha família, onde meu exemplar já se encontra na terceira geração de donos, após causar admiração em avó, pai e filha, esperando o dia que será emprestado também para meus filhos.
Em “Memórias“, o imperador que governou entre os anos 117 e 138 d.C. está a beira da morte e reflete sobre sua vida, em especial sobre seus anos no cargo, em uma carta endereçada a seu sucessor Marco Aurélio. Em suas lembranças, ele conta sobre sua juventude, seus amores, suas batalhas e sua ascensão ao trono, criando uma comovente narrativa de um dos períodos mais fascinantes da história, costurando em seu relato reflexões sobre a vida, a morte e a passagem do tempo.
Falando friamente, não parece diferente de nenhuma outra obra histórica. A grande sacada está na própria escrita de Marguerite, que pesquisou por muitas décadas sobre Adriano, que é tido como um dos grandes imperadores romanos, antes de começar a produzir o romance.
Em primeira pessoa, o protagonista descreve de forma meticulosa a vida cotidiana, bem como os eventos históricos importantes que marcaram o período, transportando a imaginação do leitor diretamente para a Roma antiga.
Além da acuracidade histórica, Yourcenar ainda cria um narrador extremamente carismático - como acredita-se que Adriano de fato foi. Em um retrato vívido e complexo, ele é apresentado como um líder culto, justo e sensível, que busca paz e harmonia em seu império.
Uma das coisas que mais me marcou na leitura foi o lado humano dessa grande figura, especialmente sua paixão pelo jovem Antínoo. Sem cair em clichês, Yourcenar descreve de forma muito bonita e sensível o relacionamento amoroso entre os dois homens.
Antínoo, que é tido nos arquivos históricos como um jovem de extrema beleza e bondade, morre de forma prematura aos 19 anos, deixando o imperador envolto em um luto que Yourcenar destrincha com a mesma delicadeza que marca toda a obra.
Apesar de o livro ter sido publicado em uma época em que a homossexualidade era vista com muito preconceito, a relação é tratada com naturalidade pela autora, assim como acontecia de fato na Roma antiga.
Com uma escrita exímia, um protagonista para lá de carismático e um enredo que se passa num dos períodos mais fascinantes da antiguidade, é difícil mesmo que esse livro não marque a própria história do leitor.
Com o sucesso desse e de tantos outros livros, Marguerite se tornou a primeira mulher a entrar para a Academia Francesa de Letras, algo que aconteceu apenas em 1980, três anos após a brasileira Raquel de Queiroz conseguir o mesmo feito por aqui.
"Memórias de Adriano", de Marguerite Yourcenar
Inesquecível! Li no começo do ano e tenho certeza que esse ficará para sempre na memória. É de uma delicadeza, acuidade e beleza quase ímpar. Adorei a resenha, Sarah!
Você acaba comigo - a cada resenha, quero largar tudo que estou lendo e correr pra sua indicação. Louca pra ler agora!