"Na Casa dos Sonhos", de Carmen Maria Machado
“[…] às vezes uma história é destruída, às vezes ela sequer chega a ser dita; seja como for, nossa história coletiva sofre a perda irreversível de algo grandioso.”
Existe um engano muito comum entre as lésbicas e bissexuais de que por serem parte de uma comunidade historicamente oprimida, não há casos de abusos dentro dela, apenas aceitação. A violência fica do lado de fora.
Esse foi um dos motivos de a escritora norte-americana de origem cubana Carmen Maria Machado ter demorado tanto tempo para entender que estava em um relacionamento abusivo.
Em “Na Casa dos Sonhos“ (Companhia das Letras, tradução de Ana Guadalupe), Carmen uso todo seu talento como uma das maiores escritoras de sua geração para relatar esse caso real.
Insegura desde que se lembrava como gente, a autora celebrou tamanha sorte de ter uma mulher - belíssima, magra e loira, como ela mesma descreve - interessada nela. Sem entender seu valor próprio ela embarca nessa jornada que parece boa demais para ser verdade.
A companheira, que permanece sem nome durante o livro, percebe essa insegurança e a usa contra Carmen, mas de forma lenta e gradual, e a escritora só percebe o buraco no qual caiu muito tempo mais tarde, muito depois de seus amigos mais próximos, por exemplo.
Ao procurar por ajuda, ela percebe que existe um vácuo na literatura especializada e que o assunto é um tabu raramente mencionado, mesmo nas publicações LGBTQIA+. Ela dá um nome para esse fenômeno: "silêncio do arquivo".
Em entrevista ao UOL, Carmen explica que “pertencer a essa comunidade não é sinônimo de virtude — é algo neutro em termos de valores. Portanto, há quem faça o bem e há quem faça o mal, o que soa óbvio, mas acredito que a retórica acerca das pessoas queer é moldada pela necessidade política. Quando elas estão em pânico, dizem "precisamos mostrar ao mundo que somos boas pessoas. Não podemos lavar nossa roupa suja em público. Não podemos dizer às pessoas que coisas ruins acontecem aqui dentro. Precisamos mostrar uma fachada bonita". No entanto, isso é injusto, sabe? Porque héteros não precisam fazer isso, não precisam provar que são dignos de se casarem — eles apenas se casam”.
Abuso é abuso, independentemente do sexo ou orientação sexual e é fácil perceber as armadilhas psicológica formadas pela “mulher da Casa dos Sonhos”, como é chamada a namorada. Nesse momento Carmen levanta outro questionamento extremamente importante: porque você não fugiu?
Essa é uma das principais perguntas feitas a pessoas que sofreram abuso e usada comumente na tentativa de inocentar seus algozes. Acontece que o abuso não é apenas físico e também psicológico e a vítima muitas vezes se encontra numa situação de insegurança extrema, sem conseguir se desvencilhar.
O livro é escrito de forma completamente inovadora se comparada ao gênero das memórias. A história é contada de forma não-linear, assim como as lembranças são registradas na nossa cabeça. Capítulos curtos com títulos irônicos nos fazem ir virando as folhas com rapidez e as centenas de páginas são lidas rapidamente.
"Já que existem tão poucos relatos literários sobre relacionamentos abusivos entre pessoas do mesmo sexo, Machado forja uma nova maneira de contar sua história.", explica o jornal britânico “The Guardian”.
Em certo momento, Carmen faz uma espécie de jogo com o leitor, usando alternativas interativas para a ordem das páginas de determinado capítulo. Lembra um pouco seu xará, Machado de Assis, em “Dom Casmurro“, que convida o leitor a pular algumas páginas que podem não ser de seu interesse, ou ainda Julio Cortázar, em “O Jogo da Amarelinha“, onde a ordem de leitura é determinada por aquele que segura o livro.
Ainda no âmbito de comparações, o livro parece uma versão alongada, e obviamente mais realista, do conto “Mães“, do livro “O Corpo Dela e Outras Farras“, (Editora Planeta, tradução de Gabriel Brum) que catapultou Carmen ao sucesso ao ser aclamado pela critica e ter sido finalista do National Book Award.