"O Jardim do Éden", de Ernest Hemingway
Quando o escritor norte-americano Ernest Hemingway tirou a própria vida com um tiro de pistola numa manhã de 1961 em Ketchum, Idaho, ele deixou diversos trabalhos não publicados, muitos deles quase completos. É o caso do clássico “Paris é uma Festa“, livro em que relembra sua vida na Paris dos anos 1920, assim como de “Jardim do Éden“, que ficou fora de catálogo por mais de uma década por aqui até ganhar uma edição da Bertrand Brasil no começo deste ano.
O livro, no qual o escritor trabalhou de forma intermitente por mais de duas décadas até a data de sua morte, acompanha a vida de recém-casados de David e Catherine, que passam a lua de mel na Riviera francesa.
Eles levam uma rotina simples, nadando, pescando, escrevendo, comendo bem e se amando apaixonadamente. O relacionamento é colocado a prova quando Catherine decide cortar o cabelo bem curto, num penteado tradicionalmente masculino, e inverte os gêneros do casal em uma brincadeira erótica. Ela quer que David seja “a minha menina“.
Mais tarde Catherine explica se sentir finalmente em paz, como se fosse “um menino por dentro“. Interessante notar a forma como Hemingway cria uma personagem trans sem julgamentos. Na vida real, ele tinha problemas em aceitar a transição da filha Gloria, nascida Gregory.
Sempre mais ousada, Catherine tem a ideia de trazer a herdeira italiana Marita para o relacionamento, formando um trisal. E é mais uma vez interessante ver como Hemingway trata de forma tão natural um assunto que até hoje é tabu - especialmente no Brasil de Bolsonaro.
Mas assim como aconteceu em Gênesis, uma hora eles acabam deixando o Jardim do Éden, o paraíso em que viviam. Numa alusão bem clara ao episódio bíblico, a personagem que destrói o paraíso é apelidada de “diaba“ pelo protagonista.
Como de costume, o melhor de Hemingway vem à tona quando ele descreve as refeições e drinks, que só não são mais constantes no livro do que as cenas de sexo. Essas, por sua vez, acabam ficando um pouco maçantes de tão repetitivas.
Os próprios diálogos se tornam extremamente repetitivos do meio para o fim do livro, mas isso parece ter sido um artifício do autor para criar na cabeça do leitor o cenário da derrocada da sanidade de Catherine.
Não é o melhor livro de Hemingway, mas é um livro de Hemingway e isso já diz muito.