"O Lugar", de Annie Ernaux
"Arrisco uma explicação: escrever é o último recurso quando se traiu", Jean Genet
Podemos dizer que em "O Lugar" a autora, Annie Ernaux, fala sobre a vida de seu pai. Não estaria errado, mas seria uma visão bastante simplista do livro em que a escritora descreve, muito além de suas memórias, uma França que não existe mais e o choque cultural entre as gerações no pós-guerra na Europa.
O pai de Ernaux, o qual, curiosamente, permanece por toda a obra sem ser nomeado, nasceu junto ao séc. XX, apenas poucos meses antes de seu começo, em 1899, e foi testemunha de todas as transformações ocorridas em sua primeira metade.
Filho de camponeses do interior da França, ele passou sua infância e adolescência em um modelo de Europa semifeudal, enfrentou as agruras da I Guerra Mundial, uma ilusão de calmaria no período entre guerras, a dor da II GM e a euforia europeia dos anos seguintes. Esses episódios, aliás, são narrados com tamanha habilidade pela autora que é difícil largar o livro.
Annie nasceu em 1940, uma época bastante difícil para a família, mas ainda assim muito melhor do que anos anteriores. Seu pai e mãe já não são mais camponeses ou operários e sim comerciantes, donos de um pequeno negócio comprado com muito esforço que é suficiente para sustentá-los com um mínimo de conforto.
A autora não precisa deixar os estudos para trabalhar, como aconteceu em sua família nas gerações anteriores, e acaba entrando em um mundo "intelectual e burguês", como ela mesma descreve, muito diferente daquele no qual foi criada.
A insegurança de seu pai, que não tem formação acadêmica, combinada a arrogância da autora em sua fase adolescente, culminam em um afastamento que jamais será superado.
O episódio que abre o livro, a cena em que a autora faz um exame e é aprovada para lecionar no ensino médio ganha um significado muito maior quando entendemos esse abismo entre ela e o pai.
"Tinha me criado para que eu desfrutasse de um luxo que ele próprio ignorava"."(...) cultura. Era assim que ele chamava o trabalho na terra. O outro sentido de cultura, o sentido espiritual, ele considerava inútil".
Não posso deixar de fora um pequeno comentário sobre a escrita de Ernaux, que é extremamente fluida, ainda que neutra e seca, num esforço que a autora explica ter feito para poder escrever a história de seu pai sem correr o risco de, como escritora, romantizá-la para se tornar mais palatável ao leitor.
Apesar de ser um livro curto, com menos de cem páginas, temos a sensação que ele termina na hora certa. É profundo e pesado, como um soco certeiro.
"Talvez seu maior orgulho, ou até mesmo aquilo que justificava sua existência: que eu fizesse parte de um mundo que o desprezou".
“O lugar“, que já vendeu cerca de 1 milhão de cópias somente na França desde seu lançamento, no começo dos anos 1980, é tido como um clássico moderno da literatura francesa. Traduzido em mais de 20 idiomas, ele foi editado apenas neste ano no Brasil.
O livro, mais do que as memórias da relação entre Ernaux e seu pai, é um pedido de desculpas. "Talvez eu escreva porque já não tínhamos mais nada para dizer um ao outro", conclui a autora.
Ebaaa, mais textos seus na minha inbox 🎉 Annie Ernaux é arrebatadora, né? Amei sua leitura dela ♥️
fiquei com ainda mais vontade de ler!!!