"Pança de Burro", de Andrea Abreu
“Eu adorava a capacidade da Isora para dizer não às pessoas. Ela não tinha medo de que deixassem de gostar dela”
“Pança de Burro“ é o nome de um fenômeno natural característico do interior de Tenerife, nas Ilhas Canárias; trata-se de uma espécie de neblina espessa que cria um ambiente escuro e nublado, apesar do calor. E esse clima pesado, triste e abafado permeia todo o livro de estreia de Andrea Abreu, que leva o mesmo nome.
A história, que lembra em partes iguais “A Amiga Genial“, da Elena Ferrante, e “Se Deus me Chamar Não Vou“, de Mariana Salomão Carrara, é um romance de formação que narra a amizade e a perda da inocência de duas meninas de dez anos, Isora e Shit, em suas férias de verão na parte pobre de um dos principais destinos turísticos dos europeus.
A região onde moram não tem praia, o tempo está sempre ruim, as coisas são feias e sujas e as pessoas infelizes.
No início dos anos 2000, em recesso das aulas mas sem dinheiro para aproveitar o balneário europeu, as amigas inventam um mundo particular, onde o córrego faz as vezes de mar, as Barbies são estrelas de novela e bruxas malvadas moram no matagal ao redor do bairro.
Mas aos poucos, em meio ao processo de crescimento, o mundo vai perdendo seu encanto. Nessa idade em que não são mais crianças e nem adolescentes ainda, elas tentam entender o mundo dos adultos ainda por meio dos olhos de meninas.
E assim como Maria Carmem, a protagonista de “Se Deus me Chamar Não Vou”, Shit narra os acontecimentos do seu ponto de vista bastante próprio, com a linguagem, gírias e erros ortográficos de uma menina de dez anos descobrindo o mundo.
Assim como a feiura, a escatologia tem papel fundamental na história, criando uma narrativa visceral. Abreu fala sem qualquer receio sobre fluidos corporais, funções fisiológicas e dejetos. Shit, a narradora cujo nome real não sabemos, não nos poupa detalhes sobre seu corpo, que aos poucos ela vai descobrindo, assim como das pessoas à sua volta.
A protagonista, que teve seu apelido dado de maneira passivo agressiva pela melhor amiga, também vai percebendo, mesmo sem querer ver, que Isora não é uma pessoa perfeita, apesar de colocá-la em um pedestal.
A amizade é tratada como uma relação de poder desigual, o que me lembrou muito as primeiras páginas de “A Amiga Genial“. Shit é completamente devota a Iso e mesmo quando suas ações tem graves consequências na vida da narradora, ela não consegue passar muito tempo longe da amiga. “Ia pensando que eu não aguentaria mais uma semana sem ser sua amiga, que tudo bem agir como se eu valesse pouco, como uma lagarta rastejante“, pensa antes de fazerem as pazes.
Em entrevista ao jornal “O Globo“, Abreu diminui, mas confirma a influência de Ferrante. “Não sinto tanta influência de Ferrante, mas sei que ela está presente no livro. Me afetou muito ver a relação de idolatria que a protagonista da tetralogia tem com a melhor amiga. Nisso, nossas meninas se parecem. De resto, não há muito o que comparar. Ela é Ferrante, sabe?”, conclui.
A descoberta da sexualidade e a perda da inocência permeiam todo o livro. As protagonistas se beijam, inventam brincadeiras de cunho sexual e se tocam. Fica sempre a dúvida se estão apaixonadas uma pela outra, especialmente Shit por Iso, ou se é mais uma face da amizade idealizada, quase sem limites que existe entre as duas.
As meninas, na inocência própria da idade, se imaginam morando juntas no futuro, num relacionamento que nunca terminará. Mas o adulto que lê a história fica se perguntando como se dará o desfecho desse conto de fadas às avessas. E quando a conclusão chega, Abreu mostra que é uma escritora de peso.
Amei a resenha. Tô abalada até agora com esse livro!