"Ricardo e Vânia", de Chico Felitti
“Oi! O Fofão está no Hospital das Clínicas. Amputaram o dedo dele, que estava gangrenado. Ele tem surtos, quer bater em todo mundo e tem que ser amarrado porque arranca todos os acessos"
Se você já morou ou mesmo visitou o Centro de São Paulo nos últimos anos, grandes são as chances de ter visto uma das pessoas mais conhecidas da região, o “Fofão da Augusta“, como ficou conhecido Ricardo Corrêa da Silva por conta das aplicações de silicone industrial que deixaram seu rosto marcado.
Apesar de ele chamar atenção nas ruas paulistanas desde pelo menos meados dos anos 1990, muitos descobriram sua verdadeira identidade apenas em 2017, através de uma matéria do escritor e jornalista Chico Felitti no Buzzfeed.
A curiosidade pela história de uma figura tão conhecida, e da qual ao mesmo tempo se sabia tão pouco, tornou o artigo um dos mais acessados, comentados e compartilhados da história da sucursal brasileira do site de notícias e variedades norte-americano.
A matéria relata o encontro do repórter, que foi visitá-lo diversas vezes quando esteve internado no Hospital das Clínicas de São Paulo sem identificação, e vai destrinchando aos poucos detalhes de sua vida.
Nesse período, Felitti fez uma pesquisa intensa e levantou grande parte da história de vida do artista. No passado, antes de ir morar nas ruas por conta de um quadro de esquizofrenia não tratado, ele era um dos maiores cabelereiros da capital paulista, tendo cuidado das madeixas de diversas famosas, como Glória Menezes.
No livro editado pela Todavia, o jornalista vai mais longe e além de descobrir novas peças dos quebra-cabeças que era a história de Ricardo, ele também relata o encontro com Vânia, o grande amor de sua vida, que tem um passado igualmente fascinante.
No início dos anos 1980, apaixonados e morando no Centro de São Paulo, quando Vânia, antes da transição, ainda se identificava como Vagner, eles curtem a noite LGBTQIA+ e começam a injetar silicone industrial um no outro. Segundo Ricardo, a ideia era ter um rosto parecido com o das bonecas chinesas de porcelana.
A separação acontece no final da mesma década de forma brusca e Vagner foge, indo morar na França com um de seus irmãos.
A partir daí acompanhamos as duas histórias em paralelo. A derrocada da saúde mental de Ricardo e a transição e dificuldades da vida de imigrante de Vânia em outro continente.
A escrita de Felitti é encantadora. É difícil largar o livro e quase impossível não se apaixonar pelas pessoas retratadas - especialmente Isabel, a mãe do autor que o acompanha em diversos momentos chave da história e sempre tem algum comentário engraçado ou palavra de sabedoria pra compartilhar.
O tom de “Ricardo e Vânia“ lembra muito o grande clássico do jornalismo literário “O segredo de Joe Gould“, onde o repórter Joseph Mitchell faz algo similar ao investigar a vida do morador de rua que dá nome ao livro. Boêmio e muito conhecido nas ruas de Nova York, ele dizia estar escrevendo uma obra seminal, a “História Oral do Nosso Tempo”. Aliás, fica aqui outra dica de leitura.
Quase todo mundo tem uma história com Ricardo. Antes de concluir essa resenha vou contar a minha. Entre 2008 e 2010 eu morava na Santa Cecília e trabalhava no Bexiga. Para quem conhece a região, o caminho mais rápido a pé é atravessando algumas ruas que não são muito seguras de noite. Algumas vezes ao me ver, afinal, uma mulher de 1,90m de altura chama a atenção, e talvez perceber minha apreensão em atravessar a rua Caio Prado Júnior, ele me acompanhava até a Consolação. Muitas vezes ele não dizia nada e quando falava eram assuntos desconexos. Mas vou lembrar sempre dessas recordações com muito carinho.
Que incrível, amiga. Fiquei louca pra ler depois da ref do Segredo de Joe Gould!