"Sobre a Terra somos Belos por um Instante", de Ocean Vuong
“Você é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou — é por isso que eu não posso me afastar de você.”
Ler Ocean Vuong não é para os fracos. Sua escrita faz questão de tirar toda aquela camada de verniz que segura nossa existência. Seu texto vai fundo, questiona o sentido da vida, da morte, critica pequenos rituais e hábitos que estabelecemos ao longo dos anos para esquecermos que um dia, assim como as estações, nós também vamos passar.
A morte está em quase todas as páginas de "Sobre a Terra somos Belos por um Instante", mesmo que disfarçada, mesmo que subentendida. “Cachorrinho“, como é chamado por sua mãe, está sempre em luto, mesmo que não se dê conta disso. Ele vela a perda de seu país, de seu pai, de sua língua materna, da mãe que conhecia e da vida como era.
O livro é uma carta de amor para sua mãe, Rose, mas também suas memórias, seus relatos de imigrante num país que funciona a suas custas e os massacra, que é os Estados Unidos.
O livro é dividido em três partes, começando com sua infância atravessada por violência. Enquanto na escola ele era alvo de bullying por ser asiático, imigrante e não falar direito o inglês, em casa sua mãe descontava as frustrações de seu dia a dia nele.
Ter crescido durante a Guerra do Vietnã não foi fácil e deixou cicatrizes profundas em Rose, muitas vezes era apenas por meio da violência que ela conseguia se comunicar.
“Ela não normal, ok? Ela dor. Ela dói”, explica a avó, Lan, cuja história também é esmiuçada aos poucos no livro.
Vuong sabe que veio da mãe e da avó antes disso, sabe que são um pedaço de um todo frágil e belo, cujas histórias e dores se confundem e se repetem. O abuso diário do qual sua mãe é alvo no trabalho reflete nele e o preconceito com o qual navegavam a vida de imigrantes asiáticos na Nova Inglaterra, uma das regiões mais ricas, fechadas e tradicionais do país, fere toda família nos mais diversos graus.
“Você é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou — é por isso que eu não posso me afastar de você.”
Na segunda parte do livro, Vuong navega as incertezas da adolescência, a descoberta da paixão, da sexualidade e encara um outro lado frio da América, a vida daqueles que não são imigrantes, mas também são esquecidos - os “white trash“ e “rednecks“, as maiores vítimas da epidemia de opioides que assola o país, aqueles que votam em Trump e compram armas no Walmart.
Agora com 14 anos, “Cachorrinho“ vai trabalhar escondido em uma plantação de tabaco. Lá ele conhece Trevor, que se torna seu melhor amigo e aos poucos também amante.
Por meio dos olhos de Trev, ele se sente pela primeira vez visto em território norte-americano. Ele se entrega e mais uma vez é tratado de forma ambígua. Ao lançar a mão em sua direção, ele não sabe se receberá um afago ou um golpe do namorado.
A terceira parte do livro é dedicado ao luto. “Cachorrinho“ perde algumas das pessoas mais importantes de sua vida. Apesar de não ser novidade, - à beira de completar 20 anos, muitos de seus amigos já estão mortos em decorrência de overdoses -, ela sempre é mais dolorosa quando bate na porta de casa.
Escrever sobre alguém que morreu é juntar pedaços e investigar memórias. Vuong, que é um poeta premiado, não se preocupa nesse seu primeiro romance em juntar pontas soltas, mas sim com a beleza do texto. Ele caminha com habilidade pela linha tênue das metáforas que podem facilmente desembocar para uma linguagem piegas, mas sem nunca cair nessa armadilha.
Como aqueles que cresceram em lares quebrados e em situações de desespero, ele sabe que a vida é um conjunto de momentos desconexos e que as vezes somente palavras inventadas podem descrever certos sentimentos.
Vuong não apenas aprende o inglês, que não é sua língua materna, como brinca com ele, testa seus limites e o transforma.
O mais doloroso de tudo é que a mãe, Rose, jamais irá ler a carta. Ela é analfabeta.
Caraca, preciso ler esse livro!