"Todos os Nossos Ontens", de Natalia Ginzburg
"O fascismo era sobretudo feio, provinciano e ignorante. Mas não valia a pena acabar na prisão por uma coisa tão feia e desajeitada, acabar na prisão era levá-lo a sério demais”
Minha experiência lendo Natalia Ginzburg me lembra daquele poema de Manuel Bandeira sobre Teresa. Na primeira vez que li não gostei muito, na segunda também não, mas na terceira, foi um arrebatamento no maior estilo "os céus se misturaram com a terra. E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas".
Meu primeiro contato com a autora italiana foi no autobiográfico "Léxico Familiar". Achei bonitinho, mas repetitivo, arrastado e maçante. Não entendi qual a graça que viam no estilo seco de Ginzburg. Só muitos anos mais tarde consegui dar o devido valor a obra - que hoje figura como uma das minhas preferidas de todos os tempos.
”Léxico Familiar”, onde a autora relata a história de sua família, formada por intelectuais judeus e antifascistas na Itália de Mussolini, me lembrou muito "Anarquistas Graças a Deus", de Zélia Gattai, mas sem todo o carisma da escrita da esposa de Jorge Amado.
Sendo uma pessoa com o péssimo hábito de escolher o livro pela capa, resolvi dar uma segunda chance para Ginzburg após ficar apaixonada pela belíssima edição de “Todos os Nossos Ontens" lançada pelo clube de assinatura TAG. E foi a melhor coisa que fiz.
Na mesma medida que num primeiro momento me desagradou a escrita biográfica da autora, me apaixonei por seu lado romancista. Que livro senhoras e senhores, que livro…
”Todos os Nossos Ontens” é quase o duplo da biografia de Ginzburg, mas com todos os artifícios da ficção que não existem nos registros da vida real. Para quem leu “Léxico“, é impressionante reconhecer as versões romantizadas dos familiares de Ginzburg entre os parentes de Anna, a protagonista.
Assim como em “Léxico“ acompanhamos o avanço do fascismo e como o novo regime muda completamente a vida de uma família do norte da Itália. Numa saga que me lembrou um pouco a melancolia de “Éramos Seis“, clássico de Maria José Dupré, vemos Anna e seus irmãos se afastando, tentando sobreviver, cada um a seu modo, nessa realidade de guerra.
Vale destacar que o ponto alto do livro são os próprios personagens, cativantes ao extremo, do tipo que deixam saudades quando o a leitura se encerra — o final, aliás, é simplesmente soberbo.
Ginzburg, que é conhecida por seu texto seco, cru, sem muitos adjetivos e quase sempre encharcado de um tom melancólico — não por acaso ela é uma das mestres de Elena Ferrante — é, no entanto, muito engraçada.
As trapalhadas de seus personagens, assim como suas elocubrações desajeitadas acerca de temas tão estapafúrdios quanto a existência ou não de Deus, conseguem arrancar gargalhadas em voz alta do leitor.
É interessante notar que o judaísmo, elemento central de “Léxico“, segue presente em “Todos os Nossos Ontens“, mas dessa vez não o vemos mais de dentro, mas do ponto de vista que seria equivalente ao dos moradores da pequena cidade em Abruzzo onde Natalia precisou se exilar durante a II Guerra Mundial. Desta vez são os vizinhos, e não a própria família, que são perseguidos e precisam se adaptar à privação de sua liberdade.
Em “Léxico” Natalia narra a perda do marido, Leone Ginzburg, militante antifascista e judeu, durante o regime de Mussolini. Em “Todos os Nossos Ontens“, com a fé judaica delegada a terceiros, é outra pessoa de extrema importância que perde a vida, partindo o coração do leitor.
Apesar de ser uma leitura que recomendo imensamente, não é fácil de encontrar. Acontece que o livro, infelizmente, ainda não foi editado no Brasil. A Companhia das Letras que vem lançando as obras de Natalia Ginzburg nos últimos anos ainda não deu a data de sua publicação, apenas confirmou que isso está nos planos futuros da editora. A única forma de lê-lo em português é procurando pela edição da TAG em sebos. Pode parecer um pouco de esforço, mas te garanto que vale a pena.
que delícia de resenha! eu adorei Léxico Familiar e to com saudade daquele pai turrão <3
Que resenha maravilhosa. Seus textos têm aquele gostinho das nossas conversas sobre literatura, mas ainda mais afiados, ainda mais profundos. Que alegria que é te ler ❤️