Segundo o escritor e estudioso Italo Calvino, um clássico é um livro que nunca esgota a mensagem que quer passar para os leitores. Em outras palavras, se trata de uma leitura que não se tornou irrelevante com o passar do tempo. Pensando nisso, não consigo encontrar nenhuma outra definição para "A Rua", da norte-americana Ann Petry. Apesar de ter sido escrito nos anos 1940, ao tratar de temas como desigualdade racial, pobreza, violência e machismo, o livro infelizmente continua atual.
Você pode ter ouvido de que se trata da primeira obra escrita por uma mulher negra a vender mais de um milhão de cópias nos Estados Unidos, mas o livro, para muito além disso, influenciou e ainda influencia gerações de escritores e leitores. Entre os seus admiradores estão nomes que vão desde James Baldwin até Tayari Jones.
A protagonista, Lutie Jonhson, é uma jovem mãe solteira negra que erroneamente acredita no “sonho americano”; que trabalhando duro, sua condição de vida irá melhorar e a chave do sucesso é apenas seu próprio esforço. Ela crê piamente em Benjamin Franklin que disse que “qualquer um poderia enriquecer se quisesse e se trabalhasse duro o suficiente”.
No local precário em que mora junto a Bub, seu filho de oito anos, a miséria impera e todos os vizinhos parecem de alguma forma fazer parte dessa desgraça. O zelador do prédio tenta assediá-la a todo momento, enquanto a vizinha do primeiro andar é uma cafetina que quer contratá-la.
Lutie tem medo de ser arrastada para essa triste realidade marcada pela pobreza e crime, e quer de todos os modos juntar dinheiro para sair daquela via do Harlem que fica tão distante do epicentro da renascença. Ela teme pela vida de Bub, que precisa passar as tardes sozinho após a escola enquanto espera a mãe chegar do trabalho, ficando a mercê de todos os tipos de perigos.
Dessa forma, “A Rua” ganha vida própria no imaginário da protagonista e se torna o verdadeiro vilão da história ao personificar todos os efeitos malignos da sociedade desigual e racista em que vivem. É um mundo cruel, onde as pessoas não hesitam em passar a perna nas outras na tentativa inglória de obter alguma vantagem.
Ao longo do livro, acompanhamos os sonhos de Lutie serem destruídos um a um enquanto ela percebe que sua crença na meritocracia é uma falácia. Não existe lugar para uma mãe solteira negra nos Estados Unidos dos anos 1940.
A premiada escritora Tayari Jones lembra que a autora de “A Rua” entrelaça à história “comentários sagazes de cunho social que tratam da natureza implacável da pobreza e seus efeitos causados nas mulheres negras em particular”.
Narrado sob diversos pontos de vista, o livro traz um clima sombrio e noir para a história que se desenrola num ritmo de suspense. Apesar de não haver nenhum crime para ser desvendado, a escrita envolvente de Petry faz com que seja difícil largar o livro, deixando o leitor ansioso para saber o que irá acontecer com Lutie.
A sensação é de ter um par de mãos em volta do nosso pescoço que vão se fechando conforme viramos as páginas. O final, comovente e desesperador, é acima de tudo sufocante.
A editora Carambaia trouxe de volta para o Brasil o clássico da literatura norte-americana após ter ficado mais de sete décadas fora de catálogo. Trata-se de uma edição de luxo, que conta com capa dura de tecido e um projeto inspirado na estética do Harlem Renaissance. A tradução é de Cecília Floresta.
Fiquei com vontade de ler A rua. Pela sua resenha, me lembrou muito Carolina Maria e Quarto de Despejo.
Sarah, que precioso!! Obrigada por essa resenha. Já ansiosa para ler.