(Diário de Leitura) Cookie Mueller, John Waters, Nan Goldin e a Balada da Dependência Sexual
"Você não precisará se preocupar com celulite ou cigarros ou câncer ou Aids ou ISTs. Você será livre“
Comecei esse texto tentando falar sobre os livros “Walking Through Clear Water in a Pool Painted Black“ e “Edgewise“, o primeiro uma coletânea de contos escritos por Cookie Mueller e o segundo uma biografia póstuma da musa do cineasta John Waters e da fotógrafa Nan Goldin, ambos sem tradução para o português.
Mas não consegui manter o escopo diante do hiperfoco que já tenho há muitos anos nesse grupo de artistas chamados pela mídia local de “marginalizados“ - título que eles renegam. Segundo Goldin, eles jamais poderiam ser considerados à margem, uma vez que representavam o mundo, especialmente nas áreas de Provincetown e Lower East Side - locais que amontoavam o maior número de pessoas descoladas e esquisitões por metro quadrado entre meados dos anos 70 e final dos 80 nos EUA.
Se você acha que nunca ouviu falar de Cookie Mueller, provavelmente foi apenas uma desatenção. Ela começou a ser conhecida quando protagonizou alguns dos primeiros clássicos cults de John Waters, entre eles “Pink Flamingos“ e “Female Trouble“ (sendo que ela inspirou o nome deste último).
Nascida em Baltimore, assim como Waters, ela conta ter se rebelado muito cedo contra o status quo e o sonho americano. Pode ter sido a morte prematura de seu irmão, que caiu de uma árvore quando tinha apenas 14 anos. Pode ser algo inerente à sua pessoa. Não importa.
Cookie dizia nunca ter procurado problemas, mas que os problemas sempre a encontravam. Ainda adolescente, fugiu de casa e foi morar na San Francisco hippie dos anos 60. Na década seguinte, ela cruzou novamente o país, de volta à casa, conheceu John Waters, se tornou uma das dreamlanders, e depois foi parar na boêmia cidade universitária de Provincetown, na careta Nova Inglaterra.
Lá, ela conheceu a fotógrafa Nan Goldin, que registraria imagens de seu cotidiano e sua intimidade até sua morte, em decorrência da Aids, em 1989.
Goldin, por sua vez, é uma das maiores - e minhas favoritas - fotógrafas do final do século XX. Seu trabalho floresceu na era protopunk dos EUA pós-Vietnã, registrando com sua câmera de bolso seus amigos, amantes, as dragqueens com quem dividia sua casa e pessoas aleatoriamente interessantes que cruzavam seu caminho.
Tenho para mim que seu trabalho é meio que a versão imagética das canções de Lou Reed. Usuários de drogas, gigolos e prostitutas, drag queens, todos os tipos de pessoas marginalizadas pela sociedade … todos registrados em seus maiores momentos de dor ou esplendor.
A obra mais conhecida de Goldin foi o slideshow, mais tarde convertido para livro fotográfico, “The Ballad of Sexual Dependency“ (ou “Balada da Dependência Sexual“, em livre tradução para o português).
O impacto da obra começa já na capa, que traz um autoretrato de Goldin poucos minutos após apanhar de seu namorado - de quem ela não consegue se separar, daí o termo “dependência sexual“ no título.
”A essência do livro é o conflito dentro dos relacionamentos entre intimidade e autonomia. É sobre a dependência que alguém pode desenvolver sobre uma pessoa que é completamente inapropriada para ela”, explicou Goldin em entrevista ao LACMA (Los Angeles County Museum of Art).
O termo “relacionamento abusivo“ ainda não era amplamente conhecido, mas a fotógrafa sabia que estava presa a algo/alguém que não fazia bem a ela.
Eu descobri a obra de Goldin numa bienal de arte de São Paulo que aconteceu em 2010, se não me engano. Sentei diante de sua apresentação de slides e fiquei ali, abismada, por uma quantidade de tempo que não sei precisar - podem ter sido horas, mas na minha cabeça pareceram minutos. Eu queria sorver tudo que passava no telão.
As cores, os beijos, cenas de sexo, de felicidade, de danças, de violência. É difícil explicar o que senti e ainda sinto toda vez que vejo suas fotos. Toca num lugar que não sei acessar de outra forma que não por meio da arte.
Mas posso dizer com segurança que algumas das imagens mais fortes são de Cookie Mueller. Cookie sorrindo, Cookie dançando, Cookie sob o efeito de heroína, Cookie se casando e, por fim, Cookie em seu caixão.
Saindo da cidade boêmia de Provincetown, Cookie e Goldin se mudam para o Lower East Side de Manhattan. Na virada dos anos 70 para os 80, as cores eram exuberantes, assim como a moda, as drogas e a música, contrastando fortemente com a decadência da cidade.
Ramones, Blondie, Basquiat, e no Bronx todos os pioneiros do Rap, não poderiam ter vindo como de outro lugar dos EUA, como uma espécie de resposta ao punk que nascia na Inglaterra, fruto dos filhos de uma sociedade enforcada por Margaret Tatcher. Algumas pessoas acreditam que a melhor arte nasce em momentos de crise, seja pessoal ou coletiva, parece ser o caso.
Quando penso na Nova York dessa época, lembro daqueles cenas de pessoas sendo assaltadas nos becos ou estações de metrô pixadas que aparecem em tantos filmes. Numa versão mais asséptica, também podemos pensar no retrato feito pelo muscial “Rent“.
Quando falo de colapso, não é um exagero. Em 77, o então presidente Gerald Ford respondeu, negando um pedido de ajuda fiscal da prefeitura, que desejava que a cidade se explodisse.
E é nesse meio, que não sei se consegui transmitir com clareza, que esse grupo, Waters, Goldin e Cookie, brilhavam, encontrando na noite nomes como Andy Warhol, Keith Haring, Jean-Michel Basquiat e Madonna, mas também todos os párias do Lower East Side.
Cookie ganha uma coluna (de saúde!) no jornal do bairro. E é em “Ask Doctor Mueller“ que percebemos pela primeira vez que muito além de ser brilhante nas telas, ela é uma escritora extraordinária. Engraçada, irônica, pouco se fodendo sobre as consequências do que iria publicar. Na verdade, ela nunca, desde criança, deixou de escrever, mas finalmente conseguia ter essa sua faceta reconhecida.
Mas é também nessa época que os amigos começam a morrer em velocidade alarmante. “Cansei de ir ao velório de pessoas que amo“, escreveria Cookie no periódico.
Usuária de heroína há muito anos, ela descobre em 1983 ser portadora do vírus HIV. Mas isso não a impede de que se apaixonar e casar com o artista plástico italiano Vitorio Scarpati, também portador do vírus.
Ela morreria em 1989, sete semanas após o parceiro, deixando uma buraco não apenas na vida daqueles que a conheciam, mas de toda uma legião de fãs. É bonito ver as pessoas se apaixonando por ela ainda hoje, tantos anos após sua morte.
Seu livro mais famoso, a coletânea póstuma ”Walking Through Clear Water in a Pool Painted Black”, é uma forma de mergulhar nesse universo de contracultura, arte underground e vidas intensas. Uma porta de entrada para os filmes cult de John Waters, para a fotografia de guerrilha de Nan Goldin, para as obras de todo uma geração que foi dizimada pela epidemia de Aids… Ou até mesmo para uma visão da vida menos séria, quadrada e careta.
Em uma uma de suas últimas colunas, Cookie diz que a morte não existe. “Você simplesmente deixa seu corpo. Você será o mesmo, exceto que não irá precisar se preocupar com aluguel ou dívidas ou usar roupas da moda. (…) Você não precisará se preocupar com celulite ou cigarros ou câncer ou Aids ou ISTs. Você será livre“.
E, para mim, não exites nada mais Cookie Mueller do que esse texto. Recomendo.
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Esse texto me apresentou a muitas referências completamente novas pra mim, adorei!