"Ao Amigo que não me Salvou a Vida", de Hervé Guibert
"Digo a mim mesmo que este livro tem sua razão de ser justamente nessa margem de incerteza, comum a todos os doentes do mundo"
Na era das redes sociais, onde expor a própria vida virou quase regra, um gênero literário que conversa muito com nossos tempos vem chamando cada vez mais atenção. Falo da autoficção, termo cunhado em meados dos anos 1970, e que teve um de seus maiores expoentes, a escritora francesa Annie Ernaux, como ganhadora do Nobel de Literatura ano passado.
O estilo se difere da autobiografia por transformar o autor em personagem e apesar de também tratar de temas verídicos, os narra de uma forma que beira a ficção.
E se o gênero teve seu berço na França, é de lá também de onde vem alguns de seus grandes nomes, como a já mencionada Ernaux, além de Hervé Guibert, tema da resenha de hoje.
Escritor, roteirista, jornalista e fotógrafo, Guibert foi uma celebridade nos anos 1980 e 1990, tendo sido amigo próximo de pessoas como Michel Foucault, Roland Barthes e Isabelle Adjani.
Assim como Ernaux, Guibert escreveu prolificamente sobre diversas facetas da própria vida; seus amigos, romances e a relação com os pais. São ao todo mais de 25 publicações, além de trabalhos fotográficos e filmes. Mas foi “Ao Amigo que não me Salvou a Vida“ que o tornou um dos maiores fenômenos literários do final do século XX na França.
Eleito pelos críticos do jornal britânico “The Guardian“ como uma das maiores obras de autoficção de todos os tempos, o livro narra a destruição causada pela aids em sua geração.
Diagnosticado em 1988, Guibert descreve com rara delicadeza, apesar de não poupar o leitor de descrições cruas e chocantes, a perda de amigos, amantes e o luto de seu próprio futuro.
Por pertencer a um círculo social de pessoas famosas, o livro atraiu grande atenção da mídia, especialmente por trazer polêmicos detalhes sobre a morte de Foucault, que assim como o autor, foi vítima de complicações da aids, mas cujo motivo do óbito ainda não havia sido revelado até então.
Muitos, aliás, consideraram alta traição as anedotas contadas pelo amigo, que descortinaram para o grande público intimidades a respeito não apenas das preferências sexuais do filósofo, como de sua predileção por sadomasoquismo, um assunto envolto em polêmicas até hoje. Daniel Defert, companheiro de Foucault, classificou o livro como “uma fantasia perversa”.
Mas esse único fator não explica tamanho sucesso da obra, que vendeu mais de meio milhão de exemplares apenas na França e que após décadas de seu lançamento continua sendo considerado um clássico da autoficção.
Fortemente influenciado pelas obras de Jean Genet e Thomas Bernhard, o que mais marca o leitor é a brutal honestidade de Guibert, que o tira do pedestal de celebridade e o humaniza absurdamente. Ao falar de sua própria morte, de sua saúde que se esvai, do corpo que falha, de seus amores, de tesão, de sêmen, ele abre sua intimidade sem reservas e se entrega completamente. É uma mão estendida em sinal de rendimento. Torna-se impossível ao leitor qualquer sentimento que não seja de empatia profunda.
O amigo a quem Guibert dedica o livro personifica o estágio de negação após o diagnóstico, quando ele se apega com todas as forças à esperança de uma vacina experimental que poderia ser fornecida por esse conhecido que trabalha na indústria farmacêutica.
Desde o começo sabemos que sua esperança é falsa e que ele não sobreviveria. Por isso é cruel ler sobre essa ilusão estampada com fervor no texto e seu posterior esvaziamento de significado, que abre caminho para a aceitação do fim inevitável. O diagnóstico naquela época era sinônimo de uma sentença de morte lenta e não raramente desprovida de dignidade.
Após perder amigos e amantes, ele entende que será uma das próximas vítimas e é então que o artista multitalentoso decide produzir mais do que nunca, até que chegue a sua partida prematura.
O título, irônico e passivo-agressivo, é uma forma de mandar à merda o falso amigo que o encheu de promessas e esperanças enganosas neste momento de desespero.
Como explica tão bem o escritor Bernardo Carvalho na apresentação da edição brasileira lançada recentemente pela editora Todavia, a obra é “o exorcismo” da impotência de Guibert.
Temos um retrato fiel do estado de saúde Guibert em “Cytomegalovirus“, um de seus livros posteriores, ainda sem tradução para o português. Trata-se de um diário de internação onde ele expõe com a linguagem crua que lhe é característica a desumanização do paciente, especialmente aquele que é portador do vírus da aids.
Citomegalovírus, que dá nome ao livro, é uma das infecções oportunistas mais comuns em casos avançados de aids e havia causado no momento da escrita a perda quase total da visão do escritor.
Em um dos trechos mais emocionantes da publicação, Guibert se pergunta quantos livros ainda conseguirá ler e quantos poderá escrever até ficar completamente cego.
Já bastante debilitado, ele tenta tirar a própria vida logo após a conclusão do manuscrito, em 1991. Ele morreria duas semanas mais tarde, aos 36 anos, deixando para trás um legado imenso não apenas em termos de literatura, mas também na luta pelos direitos LGBTQIA+ e dos portadores do vírus da aids.
Ainda pouco conhecido no Brasil, ele foi canonizado junto a Ernaux como um dos maiores nomes da autoficção em seu país de origem.
Baixei uma amostra na semana passada pra ver se eu iria gostar do livro pq eu não tinha nenhuma referência sobre ele. Comecei a ler e me apaixonei pela escrita dele (mas estou ainda bem no comecinho). Fiquei ansiosa com a leitura agora.
Realmente não o conhecia, mas irei buscar esse livro. Muito obrigada :)