"Ioga", de Emmanuel Carrère
"O fato de existirmos no espaço e no tempo, sejamos um homem ou uma mosca ou um deus, nos condena a esse sofrimento, que é, com a mutação eterna, a lei da existência"
“Ioga”, o novo livro do escritor francês Emmanuel Carrère, me deixou sem palavras. Acho que a resenha mais fiel que eu poderia fazer seria simplesmente trazer aquele meme da Lady Gaga, sabe qual?
Eu já tinha altas expectativas quando o peguei para ler, mas elas foram superadas página após página. São incontáveis trechos de tirar o fôlego, de fazer parar em espanto e refletir sobre o que acabou de ser lido.
Este é um livro que te convida, assim como a própria prática milenar que o título prega, a parar várias vezes para respirar antes de continuar lendo.
O próprio autor comenta que “Ioga” começou como um “simpático livrinho” sobre a prática, tratando também sobre a meditação. Ansioso e já tendo passado por episódios severos de depressão, aos 60 anos Carrère é um iogue experiente. Ele usa o exercício como uma ferramenta para manter o equilíbrio emocional.
E é basicamente sobre isso que o livro trata durante toda sua primeira parte. Falando assim pode até parecer maçante ou repetitivo - e é aí que a escrita de Carrère realmente brilha. Seu humor, ironia e autodepreciação em momento nenhum deixam a bola cair.
É difícil sair dessa primeira parte sem ir correndo se inscrever na primeira escola de yoga que ver pela frente. Seu relato é didático, pessoal e realmente contagiante.
O ritmo do livro tem uma quebra profunda em sua metade, no entanto, quando o escritor precisa deixar às pressas o retiro silencioso de yoga que vem inspirando a narrativa até então.
Nesse momento ele é informado, para seu grande choque, do atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo que deixa, entre muitas vítimas, seu grande amigo Bernard Maris.
Tamanha ruptura escancara ainda mais aquilo que ele vem tentando com muita dificuldade aceitar nesses anos todos com a meditação e a yoga; que não temos controle sobre nada em nossas vidas.
A questão da saúde mental de Carrère, que até então esteve em segundo plano na narrativa, se torna a protagonista. O autor tem um colapso severo e acompanhamos esse relato enquanto acontece; de dentro do olho do furacão.
Mas mesmo tratando de assuntos tão pessoais e espinhosos, Carrère dispensa a nossa piedade. Escrito em primeira pessoa, o livro desde seu início trata o leitor como um amigo de longa data. Numa narrativa machadiana, ele conquista nossa cumplicidade, transformando-nos em companheiros tanto nos momentos de riso quanto nos de choro. E acredite em mim, o livro está repleto de ambos.
Eu amei esse livro! Até agora, uma das melhores leituras de 2023. Me peguei parando pra respirar inúmeras vezes, processando aos poucos as voltas que ele dá. É o tipo de leitura que você precisa soltar um pouco o carrinho na ladeira e confiar, se deixar levar, né? E acho que isso se estende também para o que ele propõe enquanto premissa nesses devaneios, que é reconhecer a nossa falta de controle. Bom demais.
O trecho sobre Martha Argerich, voltei várias vezes naquele vislumbre do divino. Esperança.