Nunca na história dessa newsletter eu demorei tanto para resenhar um livro após terminar sua leitura. Apesar de ser meu favorito do ano passado, escrever sobre “Uma Tristeza Infinita“, do gaúcho Antônio Xerxenesky, tem se mostrado uma tarefa bastante difícil para mim, não somente por ter mexido de uma forma muito pessoal comigo, como contarei mais adiante nesta resenha, mas também por ser um livro tão cheio de nuances que cada vez que me pego pensando sobre ele, surge uma nova reflexão na minha cabeça.
O livro, que foi ganhador da última edição do Prêmio São Paulo de Literatura, narra a história de Nicolas, um psiquiatra francês que atua numa clínica nos alpes suíços durante o período do pós-guerra, no início da década de 1950. Ainda se reestruturando e tentando entender o mundo à sua volta após o conflito, ele se sente chocado ao perceber que, assim como seus pacientes, também tem suas questões psíquicas.
Ansioso de longa data, ele se desestabiliza emocionalmente quando descobre estar tratando algumas pessoas com passado nazista. Ele se questiona sobre o sentido da humanidade e entra numa espiral de desespero existencial e melancolia - o termo que era usado para classificar a depressão antigamente.
O leitor logo descobre que o enredo é uma alegoria para falar sobre o Brasil dos anos Bolsonaro. As questões que assombraram Nicolas décadas atrás são as mesmas dos brasileiros nos últimos anos; Como agir quando pessoas, em alguns casos até mesmo próximas, começam a abraçar ideias que parecem absurdas, contrárias a todo bom senso? Como reagir diante de alguém que defende em alto e bom som um regime genocida? Como se sentir quando um líder se nega a salvar a vida de milhões e ainda é aplaudido por isso? Como se portar diante da barbárie institucionalizada?
Xerxenesky explicou nas redes sociais que o livro “trata de um tópico contemporâneo: a crise de saúde mental após uma experiência coletiva traumática que revelou que nossos vizinhos podem defender ideias autoritárias, racistas e fascistas”.
O desespero do protagonista diante de tal situação é condensado, por exemplo, no trecho em que ele se pega divagando que ”ninguém estava preparado para a vida sob o fascismo, para a violência cotidiana, para aguardar, atrás, na fila da padaria, o homem apressado com a jaqueta de couro preta, o quepe com a águia de asas abertas, receber sua baguete das mãos do padeiro sorridente”.
Ao invés de explorar mais a fundo o difícil panorama social que se desdobra diante de Nicolas, e em paralelo a realidade do leitor no Brasil de Bolsonaro, o autor, num golpe de mestre, se volta para dentro do próprio protagonista e esmiúça os efeitos nefastos no interior de sua mente.
Aos poucos, diante de tantas batalhas internas, toda essa ansiedade de Nicolas vai dando lugar a uma “tristeza infinita“. Tratando diversos pacientes diagnosticados com melancolia, ele percebe estar também sendo afetado pelo transtorno.
“E então a melancolia aparece, como uma revoada de gafanhotos no horizonte, cujas fronteiras se estendem por todo o globo, e de repente fica impossível se separar do mundo, o mundo está dentro da sua cabeça, e ele é composto por uma nuvem de insetos que trazem destruição e pânico”, reflete Nicolas.
Vemos que cada um dos personagens, tanto médicos quanto pacientes, lidou da forma que pode com o grande evento traumático que foi a II Guerra Mundial. Apesar de todos terem sobrevivido, agora eles se questionam a qual preço isso ocorreu.
Nesses momentos Xerxenesky aborda com rara delicadeza, e uma precisão que nunca vi antes, alguns temas espinhosos, daqueles difíceis de tratar sem cair em clichês, como trauma, perda, depressão e mais do que tudo distúrbios relacionados a ansiedade.
Eu sofro de TOC, o que de forma bastante simplista significa que tenho dificuldade em controlar pensamentos intrusivos, que podem se tornar uma espiral que me engole inteira quando estou numa má fase. Nos questionamentos interiores do protagonista vi pela primeira vez esse sentimento de terror tão específico descrito de forma tão real. Ler sobre sobre os percalços da mente daquele psiquiatra europeu da década de 1950 que nem mesmo de fato existiu, fez eu me sentir menos sozinha - e serei eternamente grata por isso.
É preciso lembrar que em nenhum momento o autor faz qualquer tipo de diagnóstico preciso. No posfácio da edição da Antofágica de “Bartleby, o Escrivão“, que foi traduzida por Xerxenesky, ele faz uma análise do protagonista que dá título a obra que também pode ser usada nesse caso. Segundo ele, cravar um rótulo no personagem por meio de um diagnóstico “pode ter um efeito redutor, nos levando a ignorar qualquer elemento que fuja do padrão“ e “empobrecendo leituras“. Nada disso, no entanto, impede que o leitor se identifique profundamente com Nicolas.
“Uma Tristeza Infinita“ é um livro brilhante, de uma escrita excepcional e seu grande trunfo é ter conseguido colocar em palavras esse sentimento amorfo, sem nome e ainda assim inerente à experiência humana que é tentar entender como seguir vivendo diante do inimaginável, nesse caso o nazifascismo - e o efeito colateral que períodos tão nefastos e traumáticos têm na saúde mental das pessoas.
Eu quero muito ler esse livro, ainda mais depois da tua recomendação! os melhores livros que li ano passado foram dicas tuas, então eu confio demais no que te move a escolher os livros que você escolhe! Um abraço de quem te admira
raramente esses temas me despertam interesse, seu texto me convenceu demais a ler o livro! lerei e volto pra contar 🤍