Como diria o elenco de “Rent“, existem milhares formas de medir um ano. Uma delas pode ser com meses, semanas e dias, como foi convencionado pela humanidade. No caso do musical acima mencionado, diante de uma série de desgraças, os protagonistas decidem usar como unidade de medida o conceito ultrasubjetivo que é o amor. Sendo uma newsletter literária, eu obviamente escolho os livros.
Usando esse parâmetro, esse foi um ano longo e produtivo. Fazia muito tempo que não lia tanto na minha vida - talvez tenha batido esse recorde em algum momento durante a adolescência, quando minhas únicas preocupações eram passar de ano na escola, jogar basquete e correr atrás de meninos, ou seja, eu tinha MUITO tempo livre para dedicar a minhas leituras.
Em 2022, aos 34 anos, com casa, emprego e filhos para cuidar, tive que montar uma tática de ataque que consiste basicamente em ouvir audiolivros durante as tarefas domésticas, usar o kindle antes de dormir e ler livros físicos em todos os momentos que consigo encaixar na rotina - sala de espera, transporte público, etc. Ao que me parece, tem funcionado bem e esse ano não somente bati a meta como quase a dobrei #saudadesdilma
Concluindo, eu li muito em 2022 e li bem. Cada obra foi escolhida com carinho e após muita pesquisa. Os títulos que separei nesta lista foram os que mais mexeram comigo - a ideia era separar cinco, para ter um número mais redondo, mas não consegui, oh well.
(Aviso: Os livros não estão em ordem de preferência e muitos deles nem receberam cinco estrelas no meu perfil do Goodreads, mas são aqueles cujas leituras me foram mais prazerosas. Também não se tratam apenas de obras lançadas em 2022 - mas as que li nesse período)
- "Mundo Real", de Brandon Taylor (Ed. Fósforo)
Existir, para Wallace, é algo violento. Ele é um homem negro, gay e de origem humilde no mundo da elite acadêmica norte-americana. Ele não se sente visto ou entendido.
Ele é o único negro de sua turma e o primeiro em décadas no curso de pós-graduação em bioquímica de uma renomada universidade do meio-oeste. Essa é a menor classe em muito tempo e Wallace desconfia que não seja por acaso.
Em "Mundo Real", acompanhamos um final de semana na vida de Wallace, ocasião em que o luto pela morte recente de seu pai consegue vir à tona, mesmo que ele esteja evitando há semanas encarar esse sentimento, e vai corroendo os frágeis mecanismos psíquicos que ele criou para lidar com âmbitos instáveis de sua rotina.
Frase que me marcou
"O afeto é sempre assim para ele, como um fardo indevido, como depositar um peso e uma expectativa sobre outra pessoa. Como se o afeto também fosse uma forma de crueldade"
Quem deve gostar
Pessoas que estão aguardando ansiosamente pelo próximo lançamento da Sally Rooney
- "Gabo e Mercedes: Uma despedida", de Rodrigo García (Ed. Record)
O cineasta Rodrigo García sabia que qualquer coisa que escrevesse sobre a história de seus pais, o ganhador do Nobel Gabriel García Márquez e sua companheira da vida toda, Mercedes, seria publicado. E no fundo eu sabia disso também e por esse motivo comecei a ler o livro sem maiores expectativas. Sendo filho de um dos gigantes da literatura do século XX, não pensei que o raio da boa escrita cairia duas vezes na mesma família. Eu estava enganada.
Rodrigo escreve com tamanha sensibilidade sobre sentimentos tão complexos como a perda dos pais que em diversos momentos me vi aos prantos.
Frase que me marcou
"Preciso falar com minha mãe e confirmar seus piores temores: o homem que foi seu marido por mais de meio século é agora um doente em estado terminal"
Quem deve gostar
Além dos fãs de Gabo, obviamente, a obra também deve agradar aqueles que se debulharam em lágrimas ao ler “A Ridícula Ideia de Nunca mais te Ver“, da Rosa Montero, “O Ano do Pensamento Mágico“, da Joan Didion, e “Aos Prantos no Mercado“, da Michelle Zauner
- "Pança de Burro", de Andrea Abreu (Companhia das Letras)
“Pança de Burro“ é o nome de um fenômeno natural característico do interior de Tenerife, nas Ilhas Canárias; trata-se de uma espécie de neblina espessa que cria um ambiente escuro e nublado, apesar do calor. E esse clima pesado, triste e abafado permeia todo o livro de estreia de Andrea Abreu, que leva o mesmo nome.
O romance de formação narra a amizade e a perda da inocência de duas meninas de dez anos, Isora e Shit, em suas férias de verão na parte pobre de um dos principais destinos turísticos dos europeus.
Frase que me marcou
“Eu adorava a capacidade da Isora para dizer não às pessoas. Ela não tinha medo de que deixassem de gostar dela”
Quem deve gostar
A história lembra em partes iguais “A Amiga Genial“, da Elena Ferrante, e “Se Deus me Chamar Não Vou“, de Mariana Salomão Carrara - só coisa fina
- ”Caro Michele”, de Natalia Ginzburg (Companhia das Letras)
Tem algo na escrita de Natalia Ginzburg que não sei explicar, mas quando leio seus livros me sinto como se estivesse voltando para casa depois de muito tempo. Não sei se foi a profunda identificação que tive ao ler “Léxico Familiar“ ou se é seu jeito tão íntimo e direto de escrever, sem adoçar a realidade, falando do trágico sem fazer tragédia.
O fato é que ela escreve bem demais, e quem diz isso não sou só eu. Entre seus fãs ilustres estão nomes como Alejandro Zambra e Elena Ferrante.
“Caro Michele“ é mais uma de suas obras que começa como quem não quer nada e no final te entrega tudo.
Frase que me marcou
”Quando meu pai tinha diverticulite, fiz uma viagem à Holanda. Mas sabia perfeitamente que não era diverticulite. Era câncer. De modo que, quando morreu, eu não estava lá. Mas é verdade que a certa altura da nossa vida molhamos os remorsos no café da manhã, como biscoitos”
Quem deve gostar
Quem já conhece e ama a obra da escritora italiana não irá se decepcionar com este livro. Quem curte Annie Ernaux e Elena Ferrante também deve adorar essa experiência
- “Uma Tristeza Infinita”, de Antônio Xerxenesky (Companhia das Letras)
Um livro que, apesar de se passar na Suíça do pós-guerra, traduz tão bem aquele desespero sem nome de morar no Brasil dos últimos anos. Acho que essa é a melhor forma de descrever a história de Nicolas, um psiquiatra francês ainda se reconstruindo após o conflito, que percebe ter muito mais em comum com seus pacientes do que imaginava.
A escrita do Antônio Xerxenesky - autor da excelente newsletter
- é de tirar o chapéu. Eu tenho TOC e nunca vi ninguém descrever tão bem a sensação de impotência e desespero diante da existência que distúrbios de ansiedade podem causar.Frase que me marcou
”Nenhum livro trazia alertas sobre isso, pois ninguém estava preparado para a vida sob o fascismo, para a violência cotidiana, para aguardar, atrás, na fila da padaria, o homem apressado com a jaqueta de couro preta, o quepe com a águia de asas abertas, receber sua baguete das mãos do padeiro sorridente”
Quem deve gostar
Fãs de literatura brasileira contemporânea, mas mais que isso, todo mundo que ficou se questionando sobre os rumos que o Brasil tomou nos anos do governo Bolsonaro
- “Meu Ano de Descanso e Relaxamento”, de Ottessa Moshfegh
(Se demorei tanto para ler esse livro que foi sucesso absoluto na minha bolha, foi porque eu sabia que iria adorá-lo e sofro um pouco de masoquismo literário - adio obras para ler, alongo leituras desnecessariamente e por aí vai. Talvez seja uma espécie de ansiedade de separação editorial).
O luto se manifesta nas pessoas das mais diferentes formas. A protagonista desse romance, após perder os pais e terminar um relacionamento tóxico, faz aquilo que muitos de nós já sonhamos e nunca tivemos coragem de colocar em prática: dormir por um ano inteiro na base de remédios e “acordar” apenas quando se sentir melhor.
Preparem-se, o final da narrativa é de tirar o fôlego.
Frase que me marcou
”Lá está ela, um ser humano, mergulhando no desconhecido, e ela está bastante acordada”
(Essa frase pode parecer spoiler, mas juro que não é)
Quem deve gostar
Acho que 90% da população demográfica que segue meu perfil irá gostar desse livro essencial da biblioteca millenial ao lado de “A História Secreta“, “Conversas entre Amigos“, “Falso Espelho“, “Copo Vazio“ e por aí vai …
-"Queenie", de Candice Carty-Williams (Ed. Astral Cultural)
Tem alguns livros muito bons que estouram lá fora e passam quase desapercebidos por aqui, algo que nunca vou entender. Seria um problema de marketing, uma mudança brusca na arte da capa ou algum fator que não se traduz bem para o português? “Queenie“, de Candice Carty-Williams, é mais um exemplo disso.
O livro, elogiado por nomes como Jojo Moyes e Bernardine Evaristo, foi aclamado pela crítica norte-americana e britânica e chegou inclusive a ganhar o British Book Awards como livro do ano de 2020, sendo sucesso de vendas no Hemisfério Norte. Mas aqui passou quase batido. Não deveria.
Frase que me marcou
”Ser corajosa não é o mesmo que estar bem”
Quem deve gostar
Essa leitura deve agradar aos fãs de “Luxúria“, da Raven Leilani, e de ”Garota, Mulher, Outras”, de Bernardine Evaristo, por também abordar temas como o racismo na sociedade atual, saúde mental e relacionamentos tóxicos
- "Aos Prantos no Mercado", de Michelle Zauner, (Ed. Fósforo)
Esse é um daqueles livros que mexe tanto com a gente que é até difícil de saber por onde começar a falar.
É uma verdade universalmente conhecida que nossos pais um dia morrerão - afinal, todos morrem. É, no entanto, um susto enorme quando o inevitável acontece; ninguém nunca está preparado para essa perda imensa.
Uma mãe, por mais problemática que seja essa relação, é o ponto de partida da nossa própria vida. Perder a pessoa que nos gerou é também perder um pouco o senso de identidade e origem. E nessa obra Zauner discute além do luto, a difícil relação entre mães e filhas, passando por aspectos da cultura sul-coreana, como sua culinária afetiva.
Frase que me marcou
”O H Mart é para onde os filhos de imigrantes seguem quando querem encontrar a marca de macarrão instantâneo que lembra o lar da infância. É onde as famílias coreanas compram biscoitos de arroz para fazer tteokguk, a sopa de carne e biscoito de arroz que recebe o Ano-Novo. É o único lugar em que dá para encontrar um barril gigante de alho descascado, porque é o único lugar que realmente entende a quantidade de alho necessária para o tipo de comida que a sua gente consome. O H Mart é a libertação do único corredor da seção “étnica” dos mercados comuns. Aqui, não tem feijão enlatado ao lado de frascos de molho de pimenta sriracha. Em vez disso, é provável que você me encontre chorando em frente às geladeiras de banchan, lembrando o gosto dos ovos com molho de soja e da sopa fria de nabo de minha mãe. Ou na seção de congelados, segurando um saco de massa para bolinho, pensando nas tantas horas que eu e minha mãe passávamos à mesa da cozinha recheando a massa fina com carne de porco moída e cebolinha. Soluçando perto dos não perecíveis, perguntando a mim mesma se eu realmente continuo a ser coreana se não sobrou ninguém para quem ligar e perguntar qual era a marca de alga desidratada que a gente costumava comprar”
Quem deve gostar
Isso pode não fazer sentido na sua cabeça num primeiro momento, mas preciso apenas que confie em mim; esse livro irá agradar simultaneamente quem gosta de ler sobre luto, sobre a relação entre mães e filhas, fãs de biografias e memórias e aqueles que amam crônicas gastronômicas
Se você curtiu essa news, não se esqueça de assinar para receber mais edições do Links Literários, assim como resenhas de livros escolhidos a dedo
que lista!
(e amei as dicas de como ler mais!)
Sarah, já li algumas das suas recomendações, mas fiquei com vontade de ler todo o resto.
Que delícia receber essa seleção incrível. Muito obrigada.
Feliz 2023.