Quando vi diversos jornais comparando Jon Fosse a Samuel Beckett, logo tive certeza de que sua obra não me agradaria. Chega um certo ponto na vida do leitor em que ele já sabe de longe quais estilos prefere e em quais não deve insistir. Mas neste caso eu estava redondamente enganada. Ainda bem.
Numa espécie de bom auspício, "É a Ales" chegou em casa no mesmo dia do anúncio do Nobel. Trata-se de uma das poucas obras editadas do autor norueguês por aqui por enquanto - mês que vem a Fósforo lança “Brancura“.
Eu estava no meio de uma ressaca literária onde nenhuma leitura ia para frente e fiquei empolgada com o tamanho do livro (pequeno) e de sua fonte (grande).
Logo nas primeiras páginas fica claro o motivo da comparação a Beckett. Além de tratar de temas como a solidão humana, os dois escritores brincam com construções repletas de repetições. Diferentemente da obra do irlandês, no entanto, a escrita de Fosse, apesar de obviamente repetitiva, em momento nenhum se torna cansativa.
Pelo contrário; ele usa do recurso da repetição de palavras e termos para causar uma espécie de transe no leitor, que mesmo num calor tropical de mais de 35° C, como aconteceu na semana passada, quase sente na pele a frieza e a solidão dos fiordes escandinavos.
É difícil explicar o enredo sem entregar muita coisa ou desanimar o leitor - digo isso pois a ação se passa quase toda na cabeça da protagonista, que é invadida por espectros do passado. É uma daquelas histórias que podem parecer pequenas, mas nas mãos de Fosse se torna gigante.
Encontramos Signe no começo dos anos 2000 sentada de frente para a janela de sua casa contemplando o mar e os fiordes e lembrando do marido, Asle, desaparecido neste mesmo local muitos anos antes, em 1979.
Sua lembrança nos transporta para aquele tempo tão distante, mas que para ela nunca passou de verdade. Ela vive na sombra dessa perda e ao entrarmos em seu fluxo de pensamentos descobrimos mais e mais sobre a vida de Asle e de seu passado.
Como comentei acima, repetindo sem parar palavras, expressões e histórias, mas sempre revelando algo novo, sempre aos poucos, vamos seguindo fascinados neste transe.
A tradução, feita direto do norueguês por Guilherme da Silva Braga, brilha. Livre dos soluços comuns até mesmo às melhores traduções, o que chega às mãos do leitor é um texto límpido, que só acrescenta à experiência de leitura da obra.
Não sei se concordo com a escolha do Nobel deste ano, que mais uma vez vai para um homem europeu; até mesmo porque conheço muito pouco da obra de Fosse. Mas posso dizer com segurança que “É a Ales“ se trata de um grande livro.