"Intermezzo", de Sally Rooney
"Às vezes, você precisa que as pessoas sejam perfeitas e elas não podem ser, e você as odeia para sempre por não serem, mesmo que não seja culpa delas e nem sua"
É sempre complicado para mim falar sobre a obra da Sally Rooney. Isso vem de um lugar de sentimentos conflitantes que sinto ao ler qualquer coisa que ela escreve, talvez por isso demorei tanto para escrever sobre “Intermezzo“, (Companhia das Letras, trad. de Débora Landsberg).
Costumo odiar, ao mesmo tempo que me identifico profundamente, com seus personagens. Adoro o jeito que ela escreve, mas não sei precisar o motivo. Para mim, a leitura de Rooney é algo que beira o visceral. É como me olhar no espelho, mas não gostar muito do que vejo.
Estou envelhecendo junto com a Sally, que nasceu poucos anos depois de mim. Quando ela lançou seu primeiro livro, “Conversas entre Amigos“, em 2017, eu tinha mais ou menos a mesma idade que a protagonista. E isso continuou se repetindo em “Pessoas Normais“, “Belo Mundo onde está Você“ e novamente agora em “Intermezzo“.
É claro que o que estou relatando não é nada de novo, basta pensar no título que Rooney ganhou de “voz de uma geração“ ou de “a escritora millenial“ por excelência.
Mas em “Intermezzo“ vemos uma Sally Rooney muito mais à vontade com sua escrita, com suas ideias. Parece que ela deixa de lado a vontade de agradar e assim traz seus personagens mais humanos - cheios de falhas e virtudes.
Em seu livro mais aclamado pela crítica até o momento, conhecemos os irmãos Peter e Ivan Koubek. Com dez anos de diferença, eles não são próximos, mas se vêem de novo unidos após a morte do pai, vítima de uma longa batalha contra um câncer.
Basta dizer que ambos lidam com o luto de formas distintas, parecendo aumentar ainda mais esse abismo entre eles.
Os dois são bem sucedidos. Peter, um grande advogado de direitos humanos, e Ivan, um prodígio do xadrez. E é nesse ponto que é inserida a maior metáfora da história, aquela que dá nome ao livro.
Segundo o site chess.com, o “Intermezzo“ é um lance intermediário do jogo, também conhecido como "zwischenzug" em alemão, é uma jogada “inesperada que representa uma forte ameaça e requer uma resposta imediata. Este tipo de lance costuma acontecer entre trocas de peças ou combinações táticas, por isso que recebe esse nome”.
Em todos os momentos Peter e Ivan parecem estar num tabuleiro de xadrez. Um avança e o outro recua. Um age de forma agressiva e o outro responde com mais agressividade ainda.
E mais uma vez o leitor se vê descrito nas páginas de Rooney; afinal, quem nunca passou por um relacionamento familiar ou de amizade que mais parece um campo de batalhas. Quem nunca teve suas boas intenções mal interpretadas, piorando situações já delicadas?
(A jornalista Bárbara Bom Angelo é uma das maiores estudiosas de Sally Rooney do país e escreve a lindíssima newsletter “Queria ser grande, mas desisti“)
Pode parecer muito fácil resumir os livros de Rooney, onde as ações ocorrem principalmente dentro da cabeça de seus personagens. Mas aí está a grande sacada da obra da irlandesa, se o enredo é bastante básico, suas relações interpessoais são muito profundas.
Em “Intermezzo“, a autora fala lindamente de perdas, luto, traumas, reestruturação familiar e tudo de uma forma muito orgânica. Rooney não se rende a saídas fáceis. Sua escrita nunca esteve tão afiada ao mesmo tempo que seus personagens nunca foram tão multidimensionais e profundos.
Outro aspecto que chama a atenção é que pela primeira vez Rooney brinca com o fluxo de consciência, estilo creditado a James Joyce, conterrâneo da mesma Dublin que às vezes parece ser também uma personagem dos romances da autora.
O ponto de vista é trocado entre os personagens. E quando vemos a história pelos olhos de Peter é quando Rooney experimenta com a técnica. Num primeiro momento pode parecer confuso e até desanimar o leitor, mas vamos entender mais para frente que essa é uma forma de ilustrar a confusão mental que assola o protagonista.
“Intermezzo“ também é o nome usado para uma cena apresentada no intervalo entre os atos de uma ópera ou de uma peça. Esse interlúdio serve para entreter o público enquanto mudanças de cenário estão em andamento. Geralmente representa uma mudança de tom, permitindo momentos mais leves ou humorísticos, além de ajudar a manter o fluxo da apresentação.
E é exatamente esse momento na relação entre os irmãos Koubek que o livro retrata. Um pequeno intervalo de desentendimentos que irá resultar numa mudança de atos, num amadurecimento de todos os envolvidos, assim como da própria relação.
Eu também estou amadurecendo, envelhecendo, assim como a própria autora e seus personagens, e que privilégio é poder ver essas mudanças, livro após livro, refletidas na páginas de Rooney.
Estava saudosa de te ler, amiga! ♥️
Texto bom demais de ler esse seu!
Me peguei secretamente torcendo mais pra ter mais sobre Peter, passava meio correndo por Ivan, o que talvez se explique por minha identificação com esse fluxo de consciência. Essa coisa dela de dizer tudo sem te deixar saber o que de fato ele falou em voz alta (mas deixar meio que o leitor possa inferir por certa noção moral) é muito legal!
Adorei o livro, mas não consegui entender muito a escolha pela doença de Silvia - eu acho que o “como será que ela adoeceu e faz sentido isso” tirou um pouco minha atenção.
No geral, um livrão mesmo!!! Obrigada pelo texto!