"Línguas", de Domenico Starnone
"Inclinei-me para que ela me visse bem, pronto a também me atirar no vazio, caso ela caísse"
Começo esse texto com o disclaimer de que eu gosto muito de Domenico Starnone, e quando digo muito, quero dizer que ele é um dos meus escritores italianos favoritos da atualidade junto a Elena Ferrante, que pode ou não ser sua esposa na vida real e também pode ou não ser ele mesmo. Mas isso pouco importa.
Eu gosto de como sua escrita, para a surpresa de absolutamente ninguém, se parece muito a de Ferrante, de como eles tratam dos mesmos temas, como seus personagens parecem habitar o mesmo mundo, cidade e até mesmo bairro. É uma espécie de spin off da escritora anônima, mas com uma alma própria que poucas adaptações conseguem trazer.
Ambos têm uma linguagem fluida, mas seca, quase sem adjetivos, e personagens que quase sempre estão tentando entender o mundo a sua volta, numa espécie de romance de formação, mesmo que algumas vezes os protagonistas já tenham passado da meia idade. Mas o ganhador do Strega, a maior premiação literária italiana, traz um sal, uma ironia a mais, que me encanta.
Dito isso, dos livros de Starnone que li, e já se foram uns três ou quatro, “Línguas“ (Ed. Todavia, trad. Maurício Santana Dias) facilmente conquistou o posto de meu favorito.
Nesse lançamento recente, pela primeira vez tive contato com a narrativa de Starnone feita pelos olhos de uma criança, um menino de oito anos que passa as tardes observando a vizinha da mesma idade, que gosta de dançar no parapeito da janela do prédio vizinho.
Livros narrados por crianças sempre me fascinam. “A Vida pela Frente”, de Émile Ájar (Ed. Todavia) e “Se Deus me Chamar não Vou”, de Mariana Salomão Carrara (Ed. Nós), ao mostrarem crianças tentando entender o mundo à sua volta conquistaram o posto de algumas da minhas leituras favoritas da vida.
E é com essa ingenuidade que acompanhamos o narrador Mimí (que é o apelido de Domenico, sendo assim homônimo ao autor), num medo quase irracional de perder a amada. Ele teme que ela caia da sacada no meio de um de seus arriscados passos de dança.
Mas, numa bela homenagem ao mito de Orfeu, ele já tem elaborada a estratégia de salvamento. Como numa lenda contada por sua avó, Nannì, ele procura a porta do submundo, onde, em caso de desgraça, invadiria à força para trazer sua musa de volta ao mundo dos vivos.
Assim como Ferrante, Starnone gosta de fazer referências discretas aos clássicos, além dos mitos gregos, em “Línguas“ ele em diversas ocasiões também evoca seu conterrâneo Dante Alighieri. Aspirante a escritor, Mimí vai do céu ao inferno de Nápoles numa paixão alucinada, comparável à do poeta florentino por Beatrice.
(Num outro easter egg que aparenta ser uma piada interna recorrente do autor, a namorada do protagonista já adulto se chama Nina, numa referência que irá levar os amantes da Tetralogia Napolitana ao delírio ao lembrarem do odiado Nino Sarratore).
Descobrimos logo no início da trama que o romance é narrado pelo protagonista já adulto. Agora um escritor famoso, ele empresta os olhos de seu eu criança na tentativa de elaborar os sentimentos de paixão e luto sentidos na infância e seus ecos no presente.
Mas se o livro fala muito de amor, não é apenas do romântico. Tendo sido criado na maior parte do tempo por sua avó, Nannì, ele também destaca esse bonito laço entre os dois.
Viúva jovem, pobre e sem estudos, a avó nutre uma adoração absurda por esse neto. Existe uma certa hierarquia entre eles, no entanto. A idosa ao falar o dialeto napolitano, é tida como uma pessoa simplória, enquanto o neto se orgulha - e é motivo de orgulho de toda a família - de saber se comunicar em italiano, brilhando no ambiente acadêmico.
Além disso, do alto do pedestal onde foi colocada, a vizinha milanesa não fala o dialeto, e Mimí tenta usar de seu italiano mais rebuscado para impressioná-la nos raros momentos em que se encontram.
Mas se quando era jovem isso foi uma questão importante para ele, com seu amadurecimento, o protagonista passa aos poucos a conseguir enxergar toda a sabedoria escondida de sua progenitora, que fora enterrada por camadas de preconceito.
Ao retratar a natureza dessa relação, Starnone não deixa de lado a fina ironia pela qual é conhecido, mas, ao mesmo tempo, abre o coração para uma delicadeza que não tinha visto antes em sua obra.
O título original do livro poderia ser traduzido ao pé da letra como “A Vida Mortal e Imortal da Menina de Milão“, mas no bonito trabalho do tradutor, “Línguas“ dá destaque a essas sutilezas do texto.
Os sentimentos extremos causados pelo amor e pela morte descritos no livro, a relação entre avó e neto e a devoção dessa criança por sua paixão infantil são das coisas mais bonitas, sem cair em sentimentalismos baratos, que li esse ano.
É um enredo que num primeiro momento pode parecer muito simples, mas que vai se desdobrando de uma forma muito bonita, trazendo à tona sentimentos confusos e preciosos no leitor, evocando a névoa da infância, a qual apesar de muitas vezes não nos recordamos com precisão, faz parte de quem somos.