"Os Óculos de Ouro", de Giorgio Bassani
"Agora que seu segredo não era mais um segredo, agora que tudo estava claro, finalmente se sabia como se comportar com ele"
Eu adoro garimpar pequenos tesouros literários. Se ler é uma delícia, a sensação de descobrir grandes livros que estão fora da lista dos mais vendidos aqui no Brasil não fica muito atrás.
Irmão mais velho e menos conhecido de “O Jardim dos Finzi-Contini”¹, em “Os Óculos de Ouro” nos vemos novamente na Ferrara do autor italiano Giorgio Bassani, mas dessa vez para acompanhar a ascensão e queda do doutor Athos Fadigati.
Após se mudar para a cidade provinciana em meados de 1920, modernizando a medicina local e ganhando respeito e admiração da alta sociedade, vemos sua reputação sendo destruída aos poucos quando começam a surgir rumores a respeito de sua orientação sexual.
Com a consolidação da ideologia fascista já na década de 30, Fadigati, um solteiro cinquentão, se torna motivo de chacota. Ele passa a ser cada vez mais excluído do convívio dos próprios membros da sociedade que pouco antes o tinha em grande estima.
Um escândalo que ocorre na metade do livro sepulta de vez sua fama e sela seu ostracismo.
A história é contada muitos anos mais tarde por um conterrâneo de Fadigati. Um jovem universitário na época dos acontecimentos, ele acompanha com apreensão a rápida inversão de papéis a qual o médico é submetido.
Se os óculos de ouro usados por Fadigati dão nome ao livro, o grande protagonista é, no entanto, o desencanto do narrador com o mundo. Numa espécie de bildungsroman, ele deixa os anos da inocência para trás ao perceber a volatilidade e crueldade dos cidadãos de Ferrara.
Em paralelo, o próprio narrador, que é judeu, se vê aos poucos se juntando à Fadigati nas margens da sociedade como resultado do endurecimento das leis raciais impostas por Mussolini em 1938.
Interessante notar que o nome do narrador nunca é revelado. Isso abre a possibilidade para o leitor interpretá-lo como sendo o próprio Bassani, uma vez que a narrativa guarda muitas similaridades com sua vida pessoal - assim como foi especulado muitos anos antes sobre Marcel Proust em “Em Busca do Tempo Perdido“.
As comparações com o monstro sagrado da literatura francesa não acabam por aí. Alguns vêem no ciclo de livros ferrarenses uma grande influência proustiana - junto a “Os Óculos de Ouro“ e “O Jardim dos Finzi-Contini“, Bassani publicou outras quatro obras que se passam na mesma cidade. O primeiro livro da série, “Contos de Ferrara“, foi ganhador do prêmio literário mais conceituado da Itália, o Strega, em 1956, trazendo fama e reconhecimento para o escritor.
Da minha parte, encontro em “Os Óculos de Ouro” mais similaridades com a obra de Natalia Ginzburg. Em “Léxico Familiar” e “Todos os Nossos Ontens”, a autora também retrata histórias de judeus antifascistas italianos. (Escrevi mais sobre ela aqui).
Ainda como Ginzburg, e também Primo Levi, Bassani foi um dos primeiros judeus a escrever sobre a perseguição na Itália, conquistando notoriedade na cena literária internacional. Ele chegou a ser preso por se opor ao governo de Mussolini e teve que viver em clandestinidade durante a II Guerra Mundial.
Os italkim, como são chamados o judeus italianos, não são considerados ashkenazi ou sefaradi e têm uma cultura muito própria, ainda que não tão conhecida. Numa nota pessoal, parte da minha família é de judeus italianos e reconheço pessoas muito queridas e seus trejeitos em vários desses personagens. Estas leituras carregam um grande valor sentimental para mim.
Mas se a escrita de Bassani é tão hipnótica quanto a de seus conterrâneos, ela se difere ao trazer um tom mais leve. Enquanto Ginzburg tem um jeito seco, sem se apoiar em adjetivos, e Levi se supera na não ficção, Bassani traz uma nuance um pouco irônica, que beira o cômico em algumas situações. Sua narrativa é atravessada por desgraças, como não poderia deixar de ser, mas seus momentos felizes ganham uma ótica quase esperançosa, típica da literatura do período pós-guerra.
O jornal “The New York Times“ escreveu em seu obituário que Bassani retratou Ferrara, especialmente sua comunidade judaica, com a mesma profundidade com a qual William Faulkner e Tennessee Williams escreveram sobre o sul dos EUA.
Além de escritor, ele ficou conhecido por seu trabalho como editor, sendo o responsável pela publicação do grande clássico italiano “O Leopardo“, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, que já havia sido rechaçado por grandes casas de publicação.
Leia também.
¹ Num adorável easter egg, os Finzi-Contini são citados durante o livro. Segue o trecho:
“… Examinando a lista telefônica, na qual os nomes dos judeus apareciam inevitavelmente acompanhados de qualificações profissionais e acadêmicas, médicos, advogados, engenheiros, proprietários de grandes e pequenas empresas comerciais, e assim por diante, era possível perceber num piscar de olhos a impossibilidade de efetivar em Ferrara uma política racial que tivesse qualquer pretensão de ser bem-sucedida. Uma política desse tipo só poderia “dar certo” caso famílias como os Finzi-Contini, com aquele seu particularíssimo gosto de se manterem segregados numa grande mansão aristocrática (ele mesmo, conquanto conhecesse muito bem Alberto Finzi-Contini, jamais conseguira ser convidado a jogar tênis na casa deles, naquela magnífica quadra de tênis privada!), fossem mais numerosas. Mas em Ferrara os Finzi-Contini representavam justamente uma exceção. De resto, eles também não desempenhavam uma ineliminável “função histórica” apesar de viverem isolados, uma vez que se tornaram proprietários do palácio da avenida Ercole I e das terras de alguma antiga família da aristocracia ferrarense hoje extinta.”
Uau! Não me atentei a esse livro quando saiu, mas agora quero MUITO ler 🖤
Gosto muito da ginzburg, gostei de saber sobre outro escritor parecido. :)