"O Acontecimento", de Annie Ernaux
“O verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita"
Ler Annie Ernaux é quase como entrar num esquema de pirâmide. Digo isso pois seus livros, pelo menos os três publicados no Brasil que li até agora, “O Lugar“, “Os Anos“ e “O Acontecimento“, são autobiográficos e conversam entre si, muitas vezes falando de um mesmo episódio, mas sob uma ótica diferente, de acordo com a linha de cada obra. Uma leitura que puxa outra.
Se em “O Lugar“ a autora narra a história do seu pai e o choque de gerações entre ela e seus genitores, em “Os Anos“ Ernaux aborda sua própria vida, passando novamente pela relação com seus pais e comentando de forma indireta sobre a dificuldade de realizar um aborto clandestino quando a prática ainda era proibida pelo governo na França dos anos 1960. “O Acontecimento“, um livro curtinho de menos de 100 páginas, foca por sua vez, nesse último episódio, mas de novo trazendo os pais e suas diferenças para o relato.
Ao praticar sexo casual sem proteção, a Annie de já cinquenta e tantos anos se vê numa clínica esperando o resultado de um exame de Aids - o início do livro se passa nos anos 1990, quando a síndrome era ainda sinônimo de sentença de morte. Ao percorrer as ruas de Paris após deixar o consultório, ela se lembra de outra época de sua vida, quando ainda era uma estudante universitária e precisou percorrer o mesmo trajeto, mas dessa vez para procurar ajuda para realizar um aborto clandestino na capital francesa.
Em “O Acontecimento“ mais uma vez vemos a Annie que fala de forma quase confessional, sem pudor algum, como se escrevesse em um diário onde ninguém mais irá ler. A ilusão só é quebrada quando ela cita pessoas presentes no momento apenas por siglas para proteger suas identidades.
Sem medir as palavras, a autora narra desde o descobrimento da gravidez, seu primeiro instinto de ignorar o ocorrido, a frieza do então namorado, a procura de ajuda, a necessidade de esconder o sofrimento da mãe e por fim o próprio processo de aborto.
Esse é o ponto alto do livro, aquele que é difícil de ler mas, ao mesmo tempo, impossível de largar. Com um espéculo cravado entre as pernas durante dias, Annie espera que o feto morra e o objeto se solte por si só. Ela sabe que existe a chance de hemorragia, mas acredita estar protegida ao tomar antibióticos de forma profilática.
Seus planos dão errado e precisando recorrer ao sistema de saúde público, vemos ela sendo tratada com má vontade e preconceito, como se merecesse passar por tudo aquilo ao optar por não ter um bebê num momento de sua vida em que não estava pronta para cuidar de uma criança.
Com seu relato cru, quase completamente desprovido de adjetivos e figuras de linguagem, a escrita da autora francesa me lembra ao mesmo tempo a de Elena Ferrante, que tem um aspecto ácido e cortante, e da também italiana Natália Ginzburg, que assim como Ernaux escreveu trabalhos autobiográficos sem nunca pesar a mão em floreios ou metáforas.
Além disso, são três escritoras que viveram o pós-guerra europeu, passando pela escassez, pela destruição e reconstrução de seus países, um trauma que talvez tenha se refletido em suas escritas.
Adorei, amiga! Ainda não li, acredita? Quero muito ler