"O Coração é um Caçador Solitário", de Carson McCullers
"Muitas vezes, nos rostos ao longo das ruas, via-se a expressão desesperada da fome e da solidão"
Não me recordo de já ter visto um título tão poético e tão certeiro para uma obra antes. Apesar de várias publicações terem abordado o tema da solidão, uma experiência tão antiga quanto a própria existência humana, nunca li nada que retratasse tão bem esse sentimento devastador como em “O Coração é um Caçador Solitário”, de Carson McCullers (editora Carambaia, tradução de Rosaura Eichenberg).
Queria ler esse livro já há muito anos, pois além de ser considerado um dos grandes clássicos modernos da literatura norte-americana, influenciou diversos autores que admiro. Apesar de ser muito pouco conhecido por aqui, no cânone norte-americano o nome de McCullers ocupa uma posição próxima de outros figurões, como Harper Lee, Hemingway, Fitzgerald, Faulkner ou Steinbeck.
"O Coração é um Caçador Solitário" é considerado sua obra-prima, tendo sido publicado em 1940, quando a escritora tinha apenas 23 anos. A partir do protagonista John Singer, que tem deficiência auditiva e não fala, ela amarra as histórias de outros quatro personagens que moram numa típica cidadezinha sulista. São eles um médico negro, uma adolescente andrógina, um comunista nômade e o dono do bar que todos estes personagens frequentam.
A escrita tem um clima sombrio, traz algo do noir dos anos da depressão norte-americana, mas se torna única ao também abarcar características da cultura sulista da época - o calor abafado, a culinária local, o preconceito e a pobreza.
Partindo do fato de que a autora era uma pessoa queer vivendo no sul conservador, as histórias relatadas no livro ganham uma nova luz e a solidão dos personagens pode ser entendida de uma forma diferente.
Apesar de McCullers em momento nenhum deixar claro que Singer era gay, tive a forte impressão de que a história fala por si só ao descrever que ele dividiu o lar e o quarto por muito anos com um grande amigo, o também surdo Antonapoulos. Na época em que o romance foi escrito, a homossexualidade era considerada crime em diversos estados norte-americanos e muitas vezes os autores precisavam recorrer a códigos e metáforas para se expressar.
Quando Antonapoulos é internado por parentes num hospital psiquiátrico, ainda no primeiro capítulo, o protagonista entra em desespero. Ele quer cuidar do companheiro, mas não tem nenhum direito garantido, pois não são familiares.
A partir daí, com o coração partido, ele se muda para o pensionato da família de Mick, uma jovem meio tomboy, e começa a fazer suas refeições no café de Biff, um homem que vê a vida com grande sentimentalismo. O intelectual Dr. Copeland e o comunista Jake completam o quadro de pessoas que se aproximam de Singer.
Num enredo narrado por diversos pontos de vista e cheio de nuances psicológicas, Singer atrai pessoas que não se sentem encaixar naquela sociedade e que de uma forma ou de outra estão desesperadas por fazer conexões humanas.
É interessante notar que apesar do nome do protagonista significar “cantor“ em inglês, ele não tem voz. Com essa lacuna na comunicação, seus novos amigos projetam seus próprios anseios em Singer, que ganha uma aura de divindade, virando um falso consolo para esses corações solitários. É como se conversassem com um espelho, sem se dar conta que ele apenas reflete a imagem à sua frente.
O próprio Singer parece preferir desta forma e evita dar muitos detalhes sobre sua vida passada. Apesar das novas amizades, em momento nenhum ele consegue aplacar a falta que sente de Antanopoulos.
O sentimento desesperado de solidão dos personagens é quase palpável. E McCullers descreve essa inadequação, essa angústia, de forma tão singela quanto poética. É uma escrita de beleza simples, sem afetação, que nos leva a lugares difíceis de acessar, deixando claro o motivo da autora ser considerada até hoje um dos grandes nomes da literatura norte-americana.
Fiquei com muita vontade de ler esse livro (que já estava na minha lista de desejados) após a sua resenha, Sarah. Excelente!
Sarah, amei esta news. Ainda não li "O coração é um caçador solitário", está na minha mira há tempos. Mas, com este teu texto, é praticamente impossível não ler. Já coloquei entre as minhas prioridades! Obrigada por análise tão delicada quanto objetiva. Feliz 2024.