Quando meu amigo disse que o amigo dele tinha escrito um livro de poesia, eu não dei muita bola. Poesia é um negócio complicado, pode ser muito boa, mas também, e isso acontece muitas vezes, pode ser muito ruim.
Quando a indicação veio de alguém que sente um afeto enorme pelo autor, fiquei com dois pés atrás. Achei que essa amizade poderia ter nublado o julgamento desse meu amigo.
Mas eu estava deliciosamente errada. Ler “Retorno ao Ventre” (Ed. Elefante), de Jr. Bellé, é uma experiência bastante especial, no melhor dos sentidos.
Bilíngue, escrito em português e no idioma kaingang (traduzido pelo professor André Luís Caetano), o livro traz a história dos antepassados de Bellé, os Kaingang originários dos Paraná.
O relato tem início num quarto de hospital, onde o autor se despede de uma tia muito querida. Na sombra desse luto, ele vai misturando ficção e realidade para narrar a trajetória de sua família, tão cheia de perdas e que em breve será marcada por mais esse adeus.
Em forma de poesia, ele elabora sobre as políticas públicas, confrontos e o apagamento pelos quais os povos originários do Brasil passaram, em especial a etnia kaingang, da qual sua mãe é descendente.
É por meio de uma grande pesquisa que Bellé nos traz esse relato que se por vezes pode ter ares de vingança, como o próprio autor menciona em um dos poemas, para mim parece muito mais uma carta de amor.
A narrativa de Bellé infelizmente não é comum e me ajudou a entender um apagamento que houve na minha própria história. Cresci ouvindo sobre a minha “bisavó índia, que foi laçada no mato” sem nunca saber sua etnia ou até mesmo seu nome verdadeiro. Algo terrível que era contado como corriqueiro. Nomes nunca foram dados aos fatos; as palavras “violência“, “estupro” e “sequestro“ nunca foram usadas neste relato.
“Retorno ao Ventre” me deu vontade de também retornar a minha própria origem e saber mais sobre minha história. Os bons livros fazem isso com a gente, nos dão um nó e nos fazem olhar para dentro.
Não acredito que existam obras “necessárias”, mas eu, e provavelmente você também, tive uma lacuna enorme na minha educação no que diz respeito aos povos originários e o livro de Bellé é um bonito jeito de começar a aprender mais sobre a verdadeira história de nosso país.
Não poderia terminar o texto sem comentar a edição lindíssima feita pela Elefante com ilustrações de Moara Tupinambá e fotos dos diversos documentos usados na pesquisa de Bellé.
Que indicação incrível! Como você, também cresci ouvindo de uma bisavó indígena pega no laço, terrível e sem nome, sem origem.